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Litan: Enigmático, visionário e perturbador

Um experimento nas fronteiras da mente do horror francês

10/10/2025

Nessa coluna, valorizamos as boas surpresas, e algumas vezes elas não estão no presente, tampouco se desenham no futuro. Em uma atualidade que aprendeu a buscar suas inovações no passado, a década de 1980 continua sendo um depósito de excelentes ideias e possibilidades. O filme de hoje é uma verdadeira viagem à inconsciência, uma produção que assumiu riscos e conseguiu se estabelecer como um dos filmes de horror mais inventivos e disruptivos de todos os tempos. Para início de conversa, sequer passaremos por perto do domínio cinematográfico norte-americano.

Coescrito, produzido, editado e dirigido por Jean-Pierre Mocky e Jean-Claude Romer, Litan é um filme de terror francês de 1982, estrelado por Marie-José Nat, Jean-Pierre Mocky, Nino Ferrer e Marisa Muxen. O filme (confuso para muitos e maravilhoso para outros tantos) também é conhecido sob títulos alternativos, incluindo La cité des specters verts e Le voleur de visages. Aqui no Brasil manteve o título original, Litan.

Começamos nosso passeio macabro ao som de um cântico à capela, enquanto somos informados sobre o que nos espera. “Máscaras, música e danças: todos os anos, na cidade de Litan, os mortos são celebrados dessa forma. Mas este ano…”. Também conhecemos algumas paisagens da cidadela. A atmosfera sombria imediatamente se precipita sobre nós, dando-nos o tom exato que permeará boa parte do filme.

Dessa pequena introdução, partimos para um pesadelo perturbador (e essa palavra é mesmo perfeita para a cena, e ficará ainda melhor se você tiver um sistema de som apropriado) no qual Nora, nossa personagem principal, prevê a morte de seu marido, Jock. Jock, geologista, está na cidade à trabalho, e suas atividades coincidem com o festival de rua de Litan.

Nora acorda assustada e telefona para o Instituto de Geologia, e ouve de alguém que ela deverá comparecer ao cemitério — a mesma voz diz que seu marido não está no trabalho, e sim em Black Rock.

Com essa informação, Nora sai pelas ruas que já estão tomadas pelas pessoas fantasiadas e mascaradas. A cidade está imersa em nevoeiros, e o comportamento das pessoas parece tão nublado quanto as ruas. Existe uma aura sombria permeando cada rosto, cada beco de Litan.

Algumas pessoas parecem catatônicas e transtornadas, e uma dessas pessoas é um motorista de ônibus, que acaba matando um médico com o veículo. A fim de chegar a Black Rock e sem poder contar com o transporte local, Nora pega carona com uma banda marcial de pessoas mascaradas. O carro para em outro ponto da cidadela.

Como parte do festival, as pessoas mais jovens de Litan, crianças e adolescentes, encenam uma caçada anual durante a festividade, que consiste em perseguir um monstro até capturá-lo. Nora está novamente entre essas pessoas, desviando das máscaras em busca do cemitério de Black Rock.

Ela encontra o garoto que está fantasiado de monstro para a encenação, e depois encontra um dos homens que trabalham com Jock — esse homem, Bohr, é pai desse garoto. Bohr tenta beijá-la à força.

Jock está trabalhando no mesmo lugar, nas redondezas do cemitério de Black Rock. Ele está dentro de uma caverna, estudando a geologia do lugar. Jock encontra o corpo inconsciente do rapaz que interpretava o monstro, e somos levados a acreditar que existe alguma coisa na água que o tenha afetado. Jock socorre o rapaz, o leva para cima e interrompe o assédio de Bohr, pai do garoto. Nora finalmente encontra Jock e todos vão até o hospital, carregando o rapaz ferido.

Existe um tom permanente de loucura e morbidez durante todo o filme, de forma que somos incapazes de montar um quadro linear nesses primeiros minutos. Fica claro que em Litan, o que importa são nossas sensações, e não o que está escrito ou roteirizado. Esse não é um filme para quem procura uma grande trama, Litan é idealizado para quem se propõe a experimentar diferentes tipos de estímulo. A produção adota um tom onírico, assustador, e segue desprezando o linear a cada frame.

Na trama, o garoto ferido acorda e entra no hospital com seu pai, Bohr, mas o garoto está catatônico, e não apresenta mais sinais vitais básicos como batimentos cardíacos, respiração ou contração das pupilas. Enquanto isso, Nora consegue requisitar uma autoridade policial, alegando que seu marido corre perigo. Dentro do hospital, tudo é ainda mais desconcertante, e mesmo os médicos e enfermeiras parecem eventualmente compartilhar do estado de loucura que toma toda a cidade. Dessa mesma forma, os pacientes passam a quilômetros do juízo perfeito. Jock também está no hospital, e acaba encontrando Bohr com a garganta cortada.

Jock e Nora conseguem a atenção da polícia, mas tanto o corpo do menino catatônico quando o corpo do pai, Bohr, desapareceram, o que destrói qualquer credibilidade e coloca Jock e Nora como suspeitos de atos violentos, ou meramente pessoas enlouquecidas. Antes que pudesse ser detido, Jock reage e nocauteia o comissário de polícia, depois foge com Nora de volta para Black Rock, onde sua equipe de geologistas instalou detonadores que podem ser ativados a qualquer momento (os detonadores continuaram instalados, uma vez que Bohr saiu às pressas para socorrer seu filho).

Enquanto Jock e Nora fogem pelas ruas, Nora reencontra imagens do pesadelo onde o marido seria assassinado. Nesse ponto do filme, confrontamos uma situação paradoxal na qual, sem o sonho e as ações tomadas por Nora, as premonições não se realizariam. É como se o sonho premonitório fosse ao mesmo tempo a causa e o efeito de um acontecimento posterior e terrível.

Desse ponto para frente, Litan apresenta uma possibilidade ainda mais estranha, que tem relação com alguma coisa azulada que desliza pela água e faz os mortos voltarem a caminhar.

Com uma condução não linear e onírica, alegorias únicas e uma sonoplastia inesperada e perturbadora, Litan despreza qualquer classificação e se veste como um filme de horror que merece ser visto e apreciado, seja por sua construção inovadora ou pela qualidade e quantidade de elementos criativos que semeou ao longo de sua existência.

Vamos parar por aqui, mas tenha certeza que o filme guarda ótimas surpresas para seus momentos finais, abordando questões filosóficas sobre a interrupção e a continuidade da vida, e nosso status como seres interligados e conectados na incompreensível experiência humana.

Seguimos com o trailer, mas você encontra o filme completo com um pouco de pesquisa. Vale muito à pena. E antes de apertar o play, escolha uma bebida relaxante, diminua a luz, e se puder, aumente um pouco o volume de seu dispositivo.

Litan não é apenas um filme: é uma experiência sensorial completa.