Darkside • Na Estrada com Serpentes & Serafins

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Arte, Amor e Erotismo em Serpentes & Serafins

07/02/2025

Amor e erotismo povoam nossa imaginação desde sempre. Não seria exagero dizer que é no encontro de arte e desejo, beleza e sedução, sexo e afeto, que poemas foram escritos, pinturas foram criadas e dramas foram encenados. Se concordarmos com Alan Moore e o seu 25000 Years of Erotic Freedon, erotismo e arte talvez estejam entre os interesses que definiram nossa espécie, fazendo-a sair das cavernas – ou então ir para elas.

Tal interesse perpassa a cultura, vide a obra paleolítica encontrada na Áustria conhecida como “Vênus de Willendorf” – de aproximadamente trinta mil anos atrás –, passando pelas inúmeras representações do mito de Eros e Psique ou de Dante e sua amada Beatriz na pintura chegando até o quadrinho de autoria de Alan Moore e Melinda Gebbie, Lost Girls – para citarmos apenas quatro exemplos. Octavio Paz, em A Dupla Chama: Amor e Erotismo, afirma que no decorrer dos últimos “dois milênios, tanto no Ocidente como no Oriente, a imaginação criou casais ideais de amantes que são a cristalização de nossos desejos, sonhos, temores e obsessões”.

Para a autora francesa Anaïs Nin, cuja obra sempre valorizou a temática afetiva, o amor seria o “único transformador, o único alquimista”, mudando “tudo em ouro” e constituindo um “antídoto contra a morte, a idade e a vida vulgar.” Em outra de suas célebre passagens, a autora de Delta de Vênus afirma que não “encontramos amor” como entidade externa ou mesmo na pessoa que amamos: no amor, “encontramos apenas nós mesmos”. Sobre o erotismo, Nin o defende como base constituinte do “conhecimento de nós próprios”, sendo ele tão “indispensável como a poesia”.

Em um romance que mapeia a cultura humana da Bíblia à literatura, da religião à alquimia, da poesia à ciência, como Serpentes & Serafins, o tema do amor e do erotismo não poderia estar ausente. Afinal, o Gênesis – e a Bíblia como um todo – e os mitos antigos dão uma importante contribuição ao imaginário amoroso ao nos contar histórias de paixões tanto humanas quanto divinas. Além disso, é o relacionamento de Alex e de Joana, a viúva brasileira de um colecionador de arte alemão, que serve de bússola para o desenvolvimento do enredo.

Na trama, Alex vai a Berlim para encontrar essa mulher e negociar com ela uma enigmática série de treze esculturas baseadas nos profetas bíblicos, peças de autoria do visionário escultor tcheco Emanuel Illians. Mas o que prometia não passar de uma negociação típica, tornou-se um encontro de múltiplas revelações – que incluem crimes guardados em segredo por ambos – e uma poderosa paixão entre dois indivíduos que se viram entregues ao corpo e às ideias um do outro.

Há sempre histórias de amor em minha ficção. Pensando na aventura insólita Parthenon Místico, o enredo tem por base o reencontro dos amigos e enamorados Bento e Sergio, que não se viam desde os dias turbulentos de O Ateneu. No caso do horror psicológico de Lição de Anatomia, a história sobre um assassino em série que está aterrorizando Porto Alegre dos Amantes, encontra uma das resoluções de seus mistérios no amor do médico e esteta Antoine Louison pela escritora e ativista Beatriz de Almeida e Souza. Por outro lado, é a paixão do inspetor Pedro Brito Cândido por Rita Baiana, de O Cortiço, que serve de motriz para o clímax do livro.

Isso não torna o amor o tema central dos meus livros, mas faz de cada uma dessas histórias uma reflexão sobre as razões que nos fazem entregar nossas vidas e mergulhar em relações afetivas. Além disso, é uma forma de explorar, por meio da literatura, como o amor também encerra jornadas de autoconhecimento e visão, como se o amado fosse um espelho de quem somos. Serpentes & Serafins opõe esses temas ao tratar a paixão de seus protagonistas como buscas espirituais e existenciais, não apenas afetivas, por vezes aludindo a elementos perenes em nossa cultura. Entre eles, a revelação do texto hebraico de origem, segundo o qual os primeiros anjos a caírem, deixando o paraíso para trás, o fizeram por amor.

Os episódios de Gênesis 6 e do apócrifo livro de Enoque, que tratam da paixão entre os anjos e as filhas dos homens, são ampliados no romance, em diálogo com obras contemporâneas como Memnoch, de Anne Rice, e A Rebelião dos Anjos, de Anatole France. Mas em Serpentes & Serafins, exploro em especial a informação de que seres angélicos poderiam tanto criar corpos físicos para interagir com humanos quanto desenvolverem a capacidade do amor e do afeto. E este é um dos temas e mistérios centrais do livro: se anjos podem se apaixonar e cair, ocupando corpos humanos, por que o mesmo não poderia acontecer com Deus?

No que concerne ao primeiro encontro de Alex e Joana, são esses temas que perpassam seu primeiro diálogo, um diálogo tanto de palavras quanto de olhares e gestos. Em um de meus capítulos favoritos do livro, Alex, um profissional comerciante de arte, arruína o leilão das peças de Illians ao expor um mistério que envolve uma das peças. Passado esse momento, uma desconcertada Joana decide encontrá-lo no dia seguinte na Alte Nationalgalerie, mais precisamente diante de uma pintura simplesmente referida como “Feuerbach”.

Em Berlim, o Alte Nationalgalerie faz parte do Museumsinsel. Conhecida como Ilha dos Museus, esse complexo de prédios históricos e catedrais de arte e cultura foi construído no arquipélago emoldurado pelas águas do Spree, quando o rio se divide em dois, dando origem à referida ilha e culminando na Berliner Dom, a famosa catedral. Quanto ao “Feuerbach”, a viúva refere-se à pintura “O Banquete”, um tema pintado em várias versões pelo alemão Anselm Feuerbach entre 1854 e 1873.

O tema usado por Feuerbach é o drama disfarçado de tratado filosófico – ou vice-versa – de autoria de Platão, um texto datado do século IV antes de Cristo. Conhecido como o primeiro estudo sistemático sobre as origens e efeitos do amor, o enredo articula um festejo grego, no qual alguns homens reúnem-se na casa de um amigo, o autor de tragédias Agaton. Presente ali está o comediógrafo Aristófanes e também o filósofo Sócrates, o professor de Platão e protagonista do texto. Passada a embriaguez dos presentes, o encontro resulta em uma série de falas que objetivam definir, descrever e analisar a origem e as principais características de Eros.

Mas o amor, que até então é apenas discutido por homens de considerável idade que parecem menos propensos a viver o desejo do que a teorizá-lo, ganha a corporificação na segundo metade do texto, quando entra em cena Alcibíades. O jovem interrompe o banquete trazendo outro tipo de sensibilidade dedicada a Eros, essa relacionada ao corpo, à dança e ao vinho, elementos comuns aos festejos de Dionísio. Feuerbach parte do tema de O Banquete para criar uma gigantesca tela dividida em duas porções, uma racional e apolínea e outra corpórea e dionisíaca.

Diante da pintura de Feuerbach, Alex e Joana fitam a porção direita do quadro, com os taciturnos velhos na mesa de banquete: poetas, pensadores e filósofos mais acostumados a pensar do que a viver seus desejos e amores. Mas do lado esquerdo, vemos um desnudo Alcebíades que adentra o salão cercado de cupidos e músicos, tanto homens quanto mulheres, para seduzir os olhares, dentro e fora do quadro.

No mesmo período da composição de Feuerbach, e Alex e Joana brincam sobre isso, Friederich Nietzsche apresentava na Basileia as conferências que levariam ao seu Nascimento da Tragédia. É como se o filósofo e o pintor estivessem, no mesmo ano, produzindo em texto e imagem a mesma reflexão: os princípios de ordem e caos, lei e energia, morte e vida, princípios naturais e estéticas que apontariam para o pensamento apolíneo de um lado e para a vivência corpórea e instintiva de Dionísio do outro. O passeio de Alex e Joana pela Nationalgalerie revisita outras obras, como a “Expulsão do Éden”, de Ticiano, com cada uma das telas e estátuas despertando neles o desejo um pelo outro, um desejo baseado em mistérios e enigmas.

Arte e poesia. Mito e cultura. Amor e eros. Todos estão entrelaçados na história do Ocidente, como se o beijo enigmático da espécie humana na esfinge da beleza e da morte – um beijo tão bem captado por Franz Von Stuck – também contemplasse o beijo do fascínio e do envolvimento dos enamorados. Como Octavio Paz afirmou em seu famoso ensaio sobre o amor, “reinventar o amor é reinventar o casal original, os desterrados do Éden, os criadores deste mundo e da história”. E Alex e Joana sabem o que isso significa, não apenas em seus beijos como também em seu erotismo, um erotismo que é igualmente intenso e sensível, ardente e nostálgico, intrépido e puro.

Assim, Serpentes & Serafins vai pouco a pouco se afastando das reflexões e dos dialógicos históricos, teológicos e artísticos, para focar no apaixonamento de seus dois protagonistas, dois seres igualmente emparedados em questões de fé, vida e continuidade. E o que confunde ou dissolve essas questões é o amor e a paixão que pouco a pouco passar a unir os dois personagens. Isso, um pouco antes de serem visitados por Samael, o demônio que terá muito a dizer sobre amor, desejo e arte.