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DarksideEntrevista

Francisca Libertad fala ao DarkBlog sobre o processo sinuoso de escrever seu livro

Se Acaso Numa Curva se baseia em uma vivência da autora

12/02/2025

Imagine um Cidade de Deus, só que em vez de narrado por Buscapé, mostrasse o ponto de vista de Angélica, a namoradinha rica do personagem de Alexandre Rodrigues vivida por Alice Braga no clássico indiscutível de Fernando Meirelles. Se Acaso Numa Curva, de Francisca Libertad, segue por um caminho próximo a isso. O romance recém-lançado pela DarkSide® Books acompanha as aventuras de Dora, uma adolescente de classe média alta do Rio de Janeiro dos anos 1990 que se envolve com um traficante na era da ascensão do funk e das facções nos morros cariocas. 

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E esta é a história baseada na vivência da autora, que, antes de ir para Hollywood estudar e fazer carreira como assistente de direção, namorou um traficante. Coming of age, relação entre mãe e filha, amores proibidos, crimes, Rio de Janeiro dos anos 1990, está tudo lá, registrado a partir de uma “catarse”, como Francisca bem definiu o processo de escrita. 

“Não tinha a pretensão de que se tornasse um livro, era mais uma necessidade de registrar momentos singulares de uma experiência tão atípica […]. Tive que revisitar questões que nem eu sabia que estavam mal resolvidas. O processo foi uma autoanálise em que me virei do avesso”, diz ela, em entrevista para o DarkBlog. Leia abaixo a íntegra do papo.

DarkBlog: Logo na abertura do livro você diz: “Qualquer coincidência não é mera semelhança”. O quanto de Francisca realmente existe na Dora e o que foi além?

Francisca Libertad: O livro é um retrato de uma era da minha adolescência em que namorei o gerente do tráfico de um morro carioca. Todas as cenas são transcrições dessas memórias. Como a memória é sempre a perspectiva de uma lente pessoal, me dei a liberdade de ficcionalizar na Dora os espaços não preenchidos dessas lembranças.

se acaso numa curva

D: Considerando que Dora é uma espécie de alter ego seu, como foi reviver essa história tantos anos depois, já morando na Califórnia, bem distante desta realidade? O que Francisca aprendeu com Dora? 

FL: Foi muito intenso e profundo. Não tinha a pretensão de que se tornasse um livro, era mais uma necessidade de registrar momentos singulares de uma experiência tão atípica. À medida em que a escrita foi amarrando essas histórias, tive que revisitar questões que nem eu sabia que estavam mal resolvidas. O processo foi uma autoanálise em que me virei do avesso, com muito riso (e choro mais ainda), e em que precisei revisitar a rebeldia e imaturidade da adolescente “pé na porta” que eu fui.

D: Se Acaso Numa Curva foi escrito 15 anos antes do lançamento propriamente dito, e escrito em inglês. Como foi reler este texto tanto tempo depois e o processo de autotradução para o português? O que mudou do original para o que vemos hoje, na edição finalizada da DarkSide® Books? 

FL: Eu não lembrava do livro. Sabia que tinha escrito, mas como foi em uma catarse — o original tinha 255 páginas de texto, escritas em 55 dias seguidos —, eu tinha guardado em uma gaveta e pulado para o próximo projeto, um longa de animação infantil no estilo Toy Story

Em 2023, durante o desenvolvimento de um roteiro sobre um serial killer, uma das roteiristas me perguntou de onde vinha meu interesse por crime. Contei da época em que estudei para ser profiler de serial killers na Behavior Science Unit do FBI, justamente por ter namorado um assassino. Ao relatar a história sobre minha era no morro, a roteirista sugeriu que desenvolvêssemos um projeto e foi quando lembrei do livro, mas não sabia se era bom. Quando reli, gostei bastante e achei que valia a pena ver se geraria interesse

Estudei para ser profiler de serial killers na Behavior Science Unit do FBI, justamente por ter namorado um assassino.

Francisca Libertad

Quando a Darkside® Books pediu para eu traduzir, inicialmente neguei. Eu preferia que fosse feito por algum tradutor profissional, acreditando que eu não teria fôlego para reviver o processo de escrita, especialmente tendo que revisitar mais uma vez esse passado bastante conturbado. Me pediram para traduzir cinco cenas para dar o tom, foi quando fui relembrando as gírias e detalhes que só voltaram à minha mente quando mudei a língua para o português. 

O original passou por dez revisões para chegar até essa final. Foi muito mais difícil traduzir do que escrever. Os capítulos e parágrafos têm a mesma estrutura do original, mas aprofundei as lembranças à medida em que fui revisando. Revisar, em geral, é um parto para mim, um trabalho técnico dificílimo, muito diferente do transborde criativo, porém crucial.

D: Você fala da importância de narrar a perspectiva de uma adolescente que viveu a ascensão dos bailes funk no Rio dos anos 1990, uma época muito retratada por homens. Como era ser uma mulher neste ambiente?

FL: No fundo, os bailes funk são mais um dos panos de fundo para história de amor da Dora. A trama passa longe de ser sobre o funk (mesmo porque nem funkeira ela é), é mais sobre a experiência de uma menina da elite no mundo do tráfico de drogas em um morro carioca

Pessoalmente falando, foi uma era muito importante na formação do meu caráter, quando pude ver o mundo sobre a perspectiva dos moradores do morro. Eu sempre busquei não limitar meu comportamento em função de gênero. Sempre agi como uma pessoa curiosa com o mundo, que me colocava nas situações, e ainda me coloco, de igual para igual. O fato de ser mulher tinha bem menos impacto do que o fato de eu ser de classe média alta. Esse sim era o abismo.  

D: Do que você sente falta do Rio de Janeiro daquela época? Como foi se reencontrar e se reconectar com a cidade que lhe serviu de inspiração depois de tanto tempo morando fora?

FL: Sinto falta da liberdade de ir e vir, não que a cidade não fosse violenta, mas a guerra entre as facções mal havia começado, não havia milícias, e tendo crescido em Santa Teresa, a gente podia pegar carona com desconhecidos e andar à noite na rua com bem mais segurança. Eu vivia sozinha para lá e para cá. Hoje, não faria mais isso. Mas quiçá isso se deve ao fato de eu ter amadurecido um pouquinho e ser bem mais consequente hoje em dia, espero eu.

Sobre a volta, morei dez anos na Califórnia. Conquistei muito além do que esperava nos meus anos trabalhando em Hollywood, ainda assim, sempre senti que não pertencia — um sentimento comum entre os imigrantes —, mesmo estando totalmente inserida na cultura. Voltei para o Rio a convite da Globo para fazer uma novela. Achei que podia ser interessante passar um ano perto da minha família depois de tanto tempo. Não tinha nenhum plano de morar no Brasil de vez. Quando cheguei aqui, acabei me apaixonando e nunca mais voltei para LA. Gosto da frase do John Lennon, que a vida é o que acontece enquanto a gente faz planos. Tem tudo a ver com o jeito que eu gosto de tocar meu trajeto.

D: Você já se referiu a Se Acaso Numa Curva como um “lado B” de Cidade de Deus. Poderia explicar melhor para os DarkSiders de que maneira as duas narrativas se diferem e, por que não, se complementam?

FL: Elas podem se complementar sim. No fundo, o lado B seria isso, uma visão de fora para dentro e, dessa vez, contada por uma mulher. No Se Acaso Numa Curva a experiência da vida no morro é contada através da perspectiva de uma menina que tem como força motora a curiosidade, a coragem, o amor, a descoberta da sua própria ética, e que, sobretudo, não tem interesse pelo mundo do crime, mas que acaba se envolvendo profundamente. A violência e o tráfico, assim como o funk, são meros panos de fundo. 

se acaso numa curva

D: Quando se fala em favela, a maioria pensa na pobreza e na violência destas comunidades. O que as pessoas precisam saber sobre as favelas que dificilmente é dito?

FL: Eu não me sinto com autoridade alguma para falar com propriedade sobre o que o morro é ou deixa de ser. Só posso falar da minha experiência e perspectiva pessoal, na qual descobri uma visão de mundo atravessada por uma realidade diferente da minha e que demandava muito pé no chão. Lá entendi que a alma humana é basicamente a mesma, independentemente da classe. No fundo, todos queremos acolhimento, realização pessoal e, de alguma forma, amor. 

D: Além da sua própria trajetória, o que mais te inspirou a escrever este livro? Quais artistas e obras foram referências para você?

FL: Eu estava cursando o UCLA Writers Program quando comecei a escrever o livro. Os feedbacks da turma me fizeram querer dar continuidade à trama. Comecei a ditar histórias com três anos, meu pai é escritor, sempre tive a leitura como parte da minha vida. Na adolescência, me apaixonei por Nelson Rodrigues, Machado de Assis, Rubem Fonseca, Gabriel García Marquez, Jorge Amado. Mais tarde, Anais Nin, Charles Bukowski, Jack Kerouac. Olhando para trás, são autores extremamente críticos sobre o comportamento humano e, a maioria, deveras despudorados. Gosto muito de escritores que não se rendem à moralidade. Ultimamente a Andrea del Fuego, Giovanna Madalosso e Annie Ernaux são as minhas favoritas. 

D: Você trabalhou em várias novelas como assistente de direção. Como a dramaturgia popular influencia a sua obra literária e vice-versa?

FL: Muito. Inclusive, me refiro aos trechos do livro sempre como cenas. Escrevo imagens — cenas decupadas de um storyboard destrinchado por inteiro na minha cabeça. Quando leio os capítulos de uma novela, olho sempre para a frase principal de cada cena. Analiso o texto primeiro como escritora, mesmo quando preciso decupar pelo olhar da direção. Acho que as duas artes se complementam muito. Gosto dessa brincadeira. Inclusive, o livro já está em processo de desenvolvimento como uma série para o streaming.

Descobri uma visão de mundo atravessada por uma realidade diferente da minha e que demandava muito pé no chão.

Francisca Libertad

D: Considerando que Se Acaso Numa Curva é uma obra sobre amadurecimento, as famosas narrativas coming of age, de que maneira você acredita que leitores, que talvez nunca tenham visitado o Rio de Janeiro, vão se conectar à história?

FL: Não tenho certeza, é difícil falar como o livro pode ser lido e interpretado pelos leitores. Mas, sem dúvida, a trama atravessa o arco de amadurecimento de uma menina virando mulher, através de um mergulho em dois mundos cariocas: o hype burguês da classe média alta que habita a zona sul versus a simplicidade e, mais ainda, as dificuldades da vida nas comunidades cariocas. Acredito que, no mínimo, farão uma viagem por essas duas realidades. 

D: Parte da narrativa aborda a relação de Dora com a mãe, e você, inclusive, dedica o livro a sua mãe. Como foi essa experiência para você e para ela?

FL: Foi complexa. Me dou super bem com a minha mãe, achava inclusive que bem mais, até me deparar com a personagem da mãe no livro. Os editores e revisores sempre voltavam com o feedback que a mãe estava vilanizada, e eu defendia com unhas e dentes que fazia parte da origem da rebeldia da Dora antagonizar a mãe, como a maioria dos adolescentes que desconstrói o heroísmo parental. À medida em que ia buscando revisar essa vilania, fui me deparando com as tais questões mal resolvidas da minha adolescência. Esse processo acabou me aproximando mais ainda da minha mãe. 

Inicialmente, ela preferiu não ler o Se Acaso Numa Curva antes de ser publicado, não queria interferir com feedbacks. Hesitou justamente por não ter certeza se o relato era atravessado pelos azedumes da minha rebeldia juvenil, especialmente porque a trama aborda questões profundas dessa relação mãe e filha, também dessa mãe com o marido e, consequentemente, com o núcleo familiar. Ela sentia que a trama não podia ser atravessada pela opinião dela, reiterando que a realidade é relativa, sendo sempre afunilada pela lente de quem conta. Essa é a liberdade que minha mãe sempre defendeu sobre a experiência de cada um. Acabou que ela só foi ler na madrugada após o lançamento. Amou tanto que leu duas vezes seguidas. Foi um alívio para mim: a escrita e o relato foram aprovados. Confesso que tinha medo de ser processada pela minha família, mas, até agora, todos gostaram bastante.

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Sobre DarkSide

Avatar photoEles bem que tentaram nos vender um mundo perfeito. Não é nossa culpa se enxergamos as marcas de sangue embaixo do tapete. Na verdade, essa é a nossa maldição. Somos íntimos das sombras. Sentimos o frio que habita os corações humanos. Conhecemos o medo de perto, por vezes, até rimos dele. Dentro de nós, é sempre meia-noite. É inútil resistir. Faça um pacto com quem reconhece a beleza d’ O terror. O terror. Você é um dos nossos.

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