Ter mais tempo para a família pode ser o sonho de muita gente, mas para algumas pessoas a convivência intensa pode ser um verdadeiro pesadelo. Prova disso é o aumento do número de casos de violência doméstica observado em alguns estados do Brasil e em diversas partes do mundo durante o isolamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus (Covid-19).
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Na primeira quinzena de maio foi divulgada uma pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostrando que o número de ocorrências de violência contra a mulher aumentou nos estados de São Paulo, Acre, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, Mato Grosso e Pará.
Em comparação aos dados do mesmo período do ano passado, o aumento chegou a 44,9%, como é o caso do estado de São Paulo. Em outro levantamento, feito pelo Plantão Judiciário da Justiça do Rio de Janeiro, os números são ainda mais expressivos: 50% mais casos foram registrados no estado.
Se os números já assustam, eles podem disfarçar uma realidade ainda mais desoladora. Em estados que registraram estabilidade ou até mesmo queda no registro de ocorrências, como é o caso de Santa Catarina, as autoridades policiais revelam que muitas mulheres, com dificuldade de irem até a delegacia fazer a denúncia, podem estar se omitindo quanto a uma rotina perigosa. No estado catarinense o transporte público está suspenso desde a metade de março, dificultando este registro, que muitas vezes só pode ser feito de forma presencial.
A falta de dados não significa que os crimes não ocorram. Os poderes públicos estaduais e federais têm disponibilizado ferramentas de denúncia on-line ou por meio de telefone, que nem sempre são divulgados amplamente ou acessíveis por parte das vítimas, muitas vezes observadas intensivamente por seus predadores.
Vale lembrar que uma das estratégias utilizadas por parceiros abusivos é justamente o afastamento da vítima de amigos, familiares e até mesmo do emprego. Adicione isso a uma vigilância constante, regras rígidas de comportamento e a restrição de acesso a necessidades básicas. O isolamento, por mais importante que seja no combate à doença, acaba dando ainda mais poder para estes abusadores.
Os abrigos para pessoas vulneráveis em situação de violência doméstica continuam ativos em sua maioria, mas o principal problema está no acesso das vítimas a estes locais. Algumas autoridades de segurança têm recomendado que estas pessoas só procurem este tipo de amparo em situações de alto risco, que envolvam sérias ameaças à vida e à integridade física da vítima, já que ficar em casa ainda é uma das melhores medidas de segurança contra a transmissão do vírus. O problema é que ficar em casa é justamente o que causa insegurança nestes casos.
Não se trata de um fenômeno observado exclusivamente no Brasil. Desde as primeiras medidas de isolamento adotadas na China esta tendência já surgiu, passando pela Europa e depois pelos demais locais onde a população foi orientada ou obrigada a permanecer em casa.
Segundo a socióloga Marianne Hester, pesquisadora da Universidade de Bristol, este padrão já era aguardado diante do isolamento. Em seus estudos, ela já havia observado que casos de violência doméstica costumam subir em períodos em que famílias passam mais tempo juntas, como Natal e férias de verão.
Embora algumas autoridades locais de segurança indiquem que o fato de homens agressivos não terem acesso a bares possa ajudar a reduzir os índices de violência, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta quanto ao consumo excessivo de álcool dentro de casa. O órgão mostrou preocupação pelo fato do consumo de bebidas alcoólicas subir em períodos de apreensão e ansiedade, servindo como válvula de escape.
A OMS chegou a recomendar aos governantes que durante a pandemia limitassem a comercialização de bebidas alcoólicas à população por dois motivos: 1) o álcool diminui a imunidade do organismo, tornando-o mais vulnerável ao novo coronavírus; e 2) o seu consumo excessivo pode desencadear atitudes violentas.
É importante lembrar que o consumo de álcool pode, sim, servir de gatilho para atitudes violentas, mas nunca é a causa para isso. O próprio sentimento de insegurança e ansiedade é um dos combustíveis por trás das agressões e, com uma crise econômica que se desenha, com perda de empregos e diminuição de renda, o problema da violência doméstica tende a durar mais do que o próprio isolamento.
Ficar mais tempo com o agressor pode diminuir as chances de denúncia da vítima. Cientes disso, alguns países adotaram medidas alternativas, como o uso de códigos para pedir socorro. Em alguns locais como Espanha, França e Chile, as farmácias foram orientadas a avisar as autoridades quando uma mulher pedir pela “máscara 19”. Na Argentina a orientação é semelhante, somente o nome do produto muda para “máscara vermelha”.
No Brasil não há uma orientação específica às farmácias, mas utilizar códigos para pedir socorro a vizinhas e amigas é uma boa possibilidade. Em Santa Catarina, uma mulher conseguiu pedir ajuda jogando uma toalha do apartamento onde mora e outra, que estava em uma situação de cárcere privado, conseguiu pedir socorro em uma rara ida ao banco.
Os canais oficiais de denúncia continuam atendendo normalmente pelos números 190 (Polícia Militar), 180 (Central de Atendimento à Mulher) e 100 (Disque Direitos Humanos). Vale lembrar que vizinhos e testemunhas também podem fazer a denúncia em nome da vítima.
Além dos telefones, o aplicativo Direitos Humanos BR, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, também disponibiliza uma ferramenta de denúncia com a possibilidade de envio de fotos. No Facebook, ao enviar uma mensagem para a página Isa.bot ou Mete a Colher, a pessoa recebe orientação sobre como proceder em casos de violência doméstica.
Vítimas que precisarem se dirigir à delegacia da mulher do seu município ganham um desconto na corrida do aplicativo 99. A empresa liberou o uso dos descontos com o limite de quatro corridas por CPF até o fim de maio.
Por mais que o isolamento seja fundamental para a contenção da Covid-19, ninguém é obrigado a permanecer em um ambiente que ofereça sérias ameaças a sua vida. Se você está ou conhece alguém nesta situação, peça ajuda a quem puder, do jeito que for possível.
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