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Nem bruxas, nem princesas

O poder das releituras femininas

19/09/2025

A Bruxa Má do Oeste é, sem dúvida alguma, uma das antagonistas mais famosas da ficção. Fruto da imaginação do escritor estadunidense L. Frank Baum, ela fez sua grande estreia literária no ano de 1900, naquele que viria a se tornar um dos maiores clássicos da literatura infanto-juvenil: O Mágico de Oz. Encarregada da tarefa de atormentar a heroína Dorothy, a personagem ficou ainda mais famosa ao ser interpretada pela atriz Margaret Hamilton na adaptação cinematográfica de 1939. Com sua pele verde, chapéu preto pontudo e nariz protuberante, a Bruxa Má do Oeste entrou no imaginário coletivo e alterou para sempre nossa ideia de bruxa, rapidamente se transformando em uma das vilãs mais conhecidas da cultura pop. 

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Mas, e se a bruxa não fosse tão malvada quanto pensávamos que ela era? Afinal de contas, nunca descobrimos como a personagem ficou desse jeito. Na verdade, nem sabemos o seu nome! Será que ela nasceu assim? Ou escolheu este caminho em algum momento da sua vida? Esse é justamente o ponto de partida de Wicked, romance de Gregory Maguire que reimagina o universo de Oz, dando uma nova roupagem à Bruxa Má do Oeste. Sim, ela tem um nome e se chama Elfaba. 

No livro, lançado em 1995, Maguire cria uma espécie de biografia para a Bruxa Má do Oeste, centrando sua busca por aceitação em uma sociedade que continuamente a rejeita e sua improvável amizade com Glinda, a Bruxa Boa do Sul. A partir disso, Wicked nos leva por uma jornada sobre amizade, acolhimento, intrigas políticas e preconceitos, mergulhando nas complexidades e motivações de Elfaba. Abordando temas universais, o livro é um lembrete de que até mesmo a mais vil das bruxas pode ter uma história de redenção, a qual merece ser contada, e que às vezes as coisas não são bem o que parecem. 

wicked

Em 2003, o poder de Wicked foi levado para os palcos, em um musical que estreou na Broadway e nunca mais saiu dos holofotes. Entre turnês internacionais, sessões esgotadas, prêmios e uma legião de fãs, a história de Elfaba ainda encontrou tempo para dominar os cinemas, com uma adaptação dividida em duas partes, protagonizada por Cynthia Erivo e Ariana Grande. No entanto, o impacto de Wicked vai muito além. Tanto o livro quanto o musical e sua adaptação audiovisual realçam a força da releitura de personagens clássicos, movimento que se mostra cada vez mais presente na literatura, no cinema e na cultura pop em geral. Mas o que isso significa? E por que é tão importante?

Oferecendo novas perspectivas

Essencialmente, a releitura visa reinterpretar uma obra ou um determinado personagem sob uma perspectiva diferente. A prática não apenas dialoga com as transformações culturais, sociais e políticas da sociedade como um todo, mas também oferece um novo olhar para narrativas conhecidas, geralmente questionando valores tidos como absolutos, arquétipos e até mesmo preconceitos enraizados. Nesse sentido, a releitura não funciona apenas como uma forma de atualização, mas também de crítica e questionamento, examinando figuras clássicas à luz de debates atuais sobre identidade, poder, raça e gênero. Ainda nesse mesmo caminho, a prática permite que estas mesmas narrativas clássicas sejam reimaginadas com sujeitos historicamente marginalizados, como pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+, assumindo o protagonismo, o que permite que suas versões sejam contadas e também funciona como uma forma de reparação simbólica. 

Pensando especificamente em personagens femininas, tradicionalmente elas foram construída a partir de arquétipos, como a mulher fatal; a donzela em perigo; a bruxa; a mãe e a mulher má, muitos dos quais reduzem a pluralidade das mulheres e as inserem em papéis bastante unidimensionais e tradicionais. Dessa forma, algumas figuras clássicas podem representar valores que hoje em dia são vistos como ultrapassados, problemáticos e até mesmo ofensivos. 

Bruxa Malvada do Oeste

É justamente aqui que a releitura entra. Ela não apenas moderniza essas personagens por meio da desconstrução e reconstrução, mas também questiona as estruturas que as criaram, mostrando que não há nada de “natural” nesse processo. A releitura permite assim que essas figuras sejam aprofundadas e vistas de forma mais complexa, humana e até mesmo ambígua, o que por sua vez ajuda na identificação de leitoras e espectadoras atuais. 

Longe de serem imagens cristalizadas que representam uma única coisa ou um único valor, elas são seres multifacetados, possuem nuances emocionais, enfrentam dilemas, contam com agência pessoal, objetivos e até mesmo erram. Ou seja, são exatamente como nós. 

Nem bruxas más, nem princesas indefesas

Quando falamos da releitura de personagens femininas estamos falando essencialmente do deslocamento do olhar tradicional para perspectivas mais críticas e humanizadas. O grande ponto é enxergar como muitas narrativas clássicas têm a tendência de conceber suas personagens como seres unidimensionais que não apenas representam valores absolutos, mas também surgem como completos opostos, como o bem versus o mal. Nesse caso, basta lembrar, por exemplo, de princesas boas contra vilãs malignas. 

wicked personagens

A releitura nos permite desafiar essas convenções, questionando normas e padrões, mostrando que ninguém é 100% maligno ou 100% bondoso. Este processo mostra que, sejam elas protagonistas ou antagonistas, tais personagens são mulheres complexas com diferentes jornadas e experiências, merecendo o direito de contar o seu lado da história e assumir as rédeas do seu próprio destino. 

A Bruxa Má do Oeste é um dos melhores exemplos disso. Se em O Mágico de Oz ela surge como a encarnação do mal, em Wicked tem a chance de contar sua história. Em sua versão clássica, a personagem aparece como uma figura cruel e irremediavelmente má, sem nenhuma nuance ou passado, enquanto em sua releitura ela é retratada com muito mais humanidade, surgindo como uma jovem inteligente, idealista e talentosa marcada pelos preconceitos sofridos ao longo de sua vida, assim como pelas violências, relações pessoais e por seu próprio ativismo político contra um sistema autoritário e hipócrita. Em Wicked, aprendemos que Elfaba ganha a alcunha de “bruxa má” por não se conformar com injustiça e decidir trilhar seu próprio caminho. Ou seja, aqui vemos que ela não é uma mulher perfeita, mas é sim muito mais do que uma bruxa verde que faz o mal apenas por fazer. 

Seguindo um rumo parecido diversas vilãs famosas ganharam releituras nos últimos anos. O exemplo mais notório foi Malévola, a grande antagonista da animação A Bela Adormecida. Criada pela Walt Disney Productions para o filme de 1959 e inspirada na “fada má” do conto de Charles Perrault, a autoproclamada “Senhora de Todo o Mal” surge como uma vilã arrogante que por puro rancor decide amaldiçoar a pequena Princesa Aurora. Contudo, em 2014, Malévola ganhou uma nova versão no filme protagonizado por Angelina Jolie. O longa subverte a perspectiva e fornece à vilã a chance de ser protagonista de sua própria história, ganhando profundidade e sendo retratada como uma mulher que é movida por sentimentos variados e não pela maldade gratuita. A partir dessa releitura, Malévola não tenta apagar os erros da personagem, mas sim escapar de um maniqueísmo bem versus mal, abordando simultaneamente temas como violência e maternidade. 

malévola

Outra vilã icônica que foi alvo de uma releitura foi Cruella de Vil. Originalmente apresentada no livro 101 Dálmatas de Dodie Smith, a personagem ficou famosa ao aparecer na animação homônima da Disney de 1961 e no filme live-action de 1996 onde foi interpretada por Glenn Close. Em todas as versões, ela é retratada de forma caricata como uma mulher egoísta, cruel, extravagante e extremamente vaidosa e fútil. Seu amor por casacos de peles é sua única motivação para sequestrar os inocentes filhotes de dálmatas, o que ressalta seu caráter maligno. No entanto, assim como aconteceu com Elfaba e Malévola, em 2021 ela teve a oportunidade de mostrar ao público sua verdadeira face no filme Cruella. Interpretada por Emma Stone, aqui ela recebe uma história de origem que não apenas ajuda a compreender suas atitudes, mas também a transforma em uma anti-heroína. Ainda que opte por métodos questionáveis, Cruella deixa de ser uma assassina de animais obcecada por casacos (a qual perpetua um estereótipo nocivo de uma feminilidade fútil) e passa a personificar temas como originalidade, construção de identidade e rebeldia contra um sistema rígido e opressor.

Nesse sentido, essas novas versões de vilãs clássicas não buscam redimir totalmente as personagens ou justificar suas ações, mas sim mostrá-las sob uma ótica mais complexa, humanizada e empática. Desta forma, não são más por natureza, mas tomam atitudes ambíguas devido às circunstâncias da vida. Ao mostrar que até mesmo as antagonistas possuem histórias de origem, essas releituras nos lembram que às vezes os verdadeiros vilões residem em sistemas de opressão, desigualdade e preconceito. 

cruella

Mas calma que não foram só elas que ganharam uma nova roupagem! Grande parte desse movimento de releitura reside em desconstruir tanto as personagens “más” quanto as “boas”, mostrando todas como seres tridimensionais com significados diversos. No caso das heroínas, como as clássicas princesas dos contos de fadas, um dos grandes pontos é questionar os modelos tradicionais de feminilidade. 

No caso da animação de 1937, Branca de Neve e os Sete Anões, baseada no conto dos Irmãos Grimm, Branca de Neve aparece como a imagem máxima da pureza, beleza ideal e passividade. Retratada como indefesa, a personagem não possui as rédeas do seu próprio destino, sendo eventualmente salva pelo príncipe encantado enquanto permanece desacordada. Já em algumas releituras contemporâneas, como o filme Branca de Neve e o Caçador de 2012 e a série de televisão Once Upon a Time, a personagem ganha um arco mais elaborado, possuindo autonomia e força ativa nos eventos da história. Além disso, essas releituras permitem utilizarmos a narrativa clássica para problematizar temas como o ideal de beleza branca, da feminilidade submissa e a rivalidade entre mulheres como uma construção social e geracional. 

branca de neve e o caçador

Pensando em outras princesas, como a sereia Ariel de A Pequena Sereia, a releitura de 2023 com Halle Bailey transformou a personagem em símbolo de uma representatividade racial, permitindo que outras experiências femininas, como a de mulheres negras, fossem incluídas na narrativa. Enquanto nas versões clássicas, Ariel renuncia a si mesma por amor, submetendo-se a um ideal feminino, no remake live-action, ela adquire muito mais agência e autonomia, de forma que sua jornada não foca apenas na procura pelo amor, mas também na autodescoberta. Já Alice de Alice no País das Maravilhas também ganhou releituras interessantes, especialmente nas versões cinematográficas do diretor Tim Burton. Enquanto no clássico de Lewis Carroll, ela aparece como uma garotinha curiosa que personifica a liberdade do pensamento infantil, nos filmes de 2010 e 2016, Alice se transforma em uma jovem mulher que não apenas recusa um casamento arranjado, como também escolhe trilhar seu próprio caminho. Aqui, ela ganha contornos ainda mais heroicos e desafia padrões de comportamento impostos às mulheres. Dessa forma, estas releituras de Alice no País das Maravilhas abordam a autonomia feminina e também servem como metáforas para o amadurecimento e seus desafios. 

No mesmo caminho, há ainda a personagem Bela do clássico A Bela e a Fera. Popularizada pela animação da Disney de 1991, ela já é representada de forma bastante diferenciada como uma leitora voraz e crítica ao ambiente em que vive, atuando como agente da transformação e mostrando que a compaixão e a bondade podem mudar o mundo. No entanto, embora seja vista como inteligente e gentil, sua história ainda orbita em torno da redenção da Fera e sua salvação por meio do amor. Na releitura homônima de 2017, em que Bela é vivida por Emma Watson, isso ainda está presente, mas suas características são aprofundadas. Ela surge muito mais independente e crítica, desafiando abertamente o machismo representado por Gaston e alfabetizando as meninas da vila. Nesse sentido, a nova versão não apenas realça a inteligência feminina, mas também aponta para a educação como ferramenta de empoderamento. 

Novo A Pequena Sereia

Ressignificando personagens clássicas

É claro que a releitura de personagens clássicos não se limita às mulheres. De uns tempos para cá, diversas histórias ganharam novas roupagens, como Macbeth, Dom Casmurro e até mesmo Frankenstein. Apesar de suas diferenças, o objetivo é o mesmo: questionar representações tidas como naturais e ahistóricas, indagando o porquê de estas figuras clássicas serem retratadas da forma que foram e entendendo que existe espaço para ressignificações. 

A revisão de personagens femininas se insere então em um novo momento que reflete uma mudança de paradigma na representação das mulheres na cultura pop, no qual o público pede por versões mais realistas, plurais e significativas. Não se trata, de forma alguma, de apagar os traços vilanescos das antagonistas ou de endeusar as heroínas. Muito menos esquecer ou demonizar estes clássicos. O propósito é transformar essas figuras – planas, binárias e idealizadas – em personagens tridimensionais, com qualidades e defeitos como todos nós. Desta forma, elas não apenas desafiam as estruturas em que foram concebidas, como também dialogam com debates contemporâneos sobre poder, identidade, subjetividade, raça e gênero. 

Alice Tim Burton

Essa transformação não nos leva apenas a repensar essas histórias clássicas e a forma como a contamos ao longo do tempo. Ela também nos faz questionar a representação feminina na cultura como um todo e como determinadas narrativas podem ser convertidas em espaços de resistência, questionamento e reinvenção.

Ao reinventar essas personagens, fornecendo voz e acolhendo suas contradições e falhas, lhes damos o direito de reescrever sua própria história e mostramos para as pequenas leitoras e espectadoras do mundo todo que elas também podem fazer isso. 

LEIA TAMBÉM: Bruxas, feminismo e folk horror: as referências de Everybody Scream

Sobre DarkSide

Avatar photoEles bem que tentaram nos vender um mundo perfeito. Não é nossa culpa se enxergamos as marcas de sangue embaixo do tapete. Na verdade, essa é a nossa maldição. Somos íntimos das sombras. Sentimos o frio que habita os corações humanos. Conhecemos o medo de perto, por vezes, até rimos dele. Dentro de nós, é sempre meia-noite. É inútil resistir. Faça um pacto com quem reconhece a beleza d’ O terror. O terror. Você é um dos nossos.

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