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Dead Ringers: Perversões, drama e David Cronenberg

Um suspense perturbador do pai do horror corporal

23/08/2024

Há muitos e muitos anos, quando o horror era apenas um bebê de presas afiadas e bochechas cor de sangue, alguns cineastas disponibilizaram todas as vitaminas necessárias para que o gênero se tornasse um monstro indestrutível. Um desses nomes é também conhecido como o pai do horror corporal, e se você nunca ouviu falar sobre David Cronenberg, talvez seja a hora de voltar para a catequese do horror. Já o filme homenageado de hoje, do próprio David Cronenberg, é bem possível que alguns devotos desconheçam.

Dead Ringers, rebatizado por aqui de Gêmeos – Mórbida Semelhança, nasceu no Canadá em 1988 e abarca os gêneros drama, terror e suspense. David Cronenberg dirigiu e coescreveu o roteiro dessa preciosidade, baseado (muito levemente) no romance Twins de Bari Wood e Jack Geasland e na vida real de Stewart e Cyril Marcus.

O filme diz a que veio no primeiro frame, com algumas ilustrações de instrumentos cirúrgicos da era paleolítica que poderiam perfeitamente abrilhantar (ainda mais) a série de livros Medicina Macabra. Tesouras, linhas, facões, espaçadores, alicates e serrotes, o crème de la crème das cirurgias praticadas antigamente em ateliês de barbeiros e outras casas do ramo. É um começo muito bonito, que converte o apavorante em lúdico.

Desse ponto, somos lançados ao Canadá, na Toronto de 1954, onde conhecemos dois garotos com interesses científicos precoces para sua idade, eles são gêmeos idênticos (Elliot e Beverly Mantle).

Em seguida, saltamos para 1967, para a universidade Cambridge, em Massachusetts, onde os gêmeos recebem uma homenagem por proporem e implementarem um novo dispositivo cirúrgico-hospitalar rapidamente adotado pela indústria médica. Agora estamos no Canadá de 1988, época presente do filme. Um dos gêmeos, Elly, está atendendo uma paciente ginecológica. Ela é uma atriz chamada Claire Niveau e tem uma condição anatômica rara que impede que ela engravide, o que leva Elly a colocar seu irmão gêmeo, Bev, para também analisá-la (sem que ela saiba que se trata de duas pessoas diferentes).

Como às vezes acontece entre gêmeos idênticos, os dois irmãos trocam de lugar ocasionalmente, com um se passando pelo outro nos momentos que elegem para tal. Um desses momentos ocorre no affair que se desenvolve com Claire. Em algumas partes desse breve começo de filme, os diálogos transparecem todo o amor de Cronenberg pelo interior dos seres humanos, por seus sistemas, órgãos e vísceras. A mão de Cronenberg também é bastante característica nos enquadramentos indiretos, na fotografia, na frieza carismática dos personagens, sua assinatura está em todas as partes.

Nos momentos seguintes, compreendemos que a troca entre parceiras sempre aconteceu entre os irmãos, sendo que a sedução inicial sempre ficou com Elly, enquanto Bev, mais tímido e caloroso, entrava em cena nos encontros posteriores. Sem saber de nada, Claire continua se envolvendo com os irmãos, e Elly apimenta a relação com um pouco do bom e velho bondage. Claire procurou a clínica pensando obsessivamente em engravidar, e os dois médicos se aproveitam de sua fragilidade para manter relações cada vez mais intensas.

O problema fica maior quando Bev se vincula emocionalmente a Claire e passa a não compartilhar suas experiências com Elly, que fica enciumado, sentindo que está perdendo o irmão. Ele insiste que devem parar de vê-la, ao que Bev não concorda. Nos encontros seguintes, Claire começa a suspeitar de algo, mas atribui as mudanças comportamentais de Bev a algum transtorno psicológico.

Claire descobre a verdade em um restaurante, com uma amiga, e confronta Bev sobre seu irmão gêmeo; exige conhecê-lo. O encontro é marcado em outro restaurante, e tudo começa com muita sobriedade, como se Elly jamais tivesse visto Claire. Ela logo os confronta, diz saber distingui-los uma vez que está dormindo com os dois. Eles ainda tentam contra-argumentar, mas é inútil. Claire está furiosa e termina tudo.

Depois de algum tempo, Bev reencontra Claire em uma exposição de arte, e ela aceita conversar com ele. Bev faz algumas confissões sobre sua relação com o irmão, mas no final das contas eles retomam o romance. Em um pesadelo de Bev, somos invadidos pela presença perturbadora do horror corporal de David Cronenberg, um momento de deleite para os fãs do diretor. No sonho, os irmãos gêmeos ainda estão conectados pela barriga, e Claire os separa com os dentes.

Bev decide se afastar do irmão e passa a compartilhar os medicamentes de abuso de Claire, e enquanto isso, Elly continua brilhando na sociedade médica, muitas vezes substituindo Bev. Em segredo e preocupada com Bev, Claire marca um encontro com Elly em um set de filmagem, propondo uma bandeira branca entre os dois, pedindo para que Elly volte a ficar próximo do irmão, que está solitário e viciado em medicamentos. Claire parte para uma viagem a trabalho em seguida.

Perdido de ciúme, Bev faz ligações constrangedoras para o hotel onde Claire está hospedada, dizendo obscenidades a quem atende, supondo que sejam seus amantes. Viciado em diferentes medicamentos, Bev está fora de si, apaixonado, enlouquecido e deprimido, o que começa a atrapalhar a vida de seu irmão gêmeo, Elly.

Algo a mencionar sobre Dead Ringers é a exposição de assuntos que eram tabus na sociedade de 1988, coisas absolutamente naturais como menstruação, exames ginecológicos e sistemas reprodutores femininos, bem como a própria natureza sexual feminina. O papel dos gêmeos adultos é interpretado por Jeremy Irons, e sua atuação é tão perfeita que, combinada com as técnicas de filmagem da mesma qualidade, nos fazem acreditar que são mesmo dois atores o tempo todo, isso em 1988!, quando o CGI ainda engatinhava e precisava de muito para ser considerado razoável.

Sem Claire por perto, Bev mergulha na espiral da ruína e acaba tendo um mal súbito por causa do coração sobrecarregado de drogas, e Elly o convence se passar por ele nas amostras sanguíneas e supervisionar o tratamento, para que as drogas não sejam rastreadas por outros médicos. Bev se recupera a ponto de poder clinicar, mas ele não é mais o mesmo, parece estar confuso e irritado com tudo e consigo mesmo. Insatisfeito com os resultados de seus exames e tratamentos, Bev passa a desenvolver novos instrumentos em um ateliê de protótipos, enquanto segue se aditivando de diferentes medicamentos.

Ainda que brevemente, o filme floresce no horror corporal de Cronenberg com esses instrumentos. Bev está prestes a fazer uma cirurgia com artefatos que parecem ter surgido em um açougue dos anos 1800. Ele tem um acesso de abstinência no meio da cirurgia, e outros profissionais envolvidos precisam contê-lo para que Bev não mate a paciente. Dessa vez Elly assume a defesa e a culpa pelo ocorrido. O hospital faz vistas grossas. Elly prefere uma solução definitiva, que consiste em atingir o mesmo estado de letargia do irmão para içá-lo do fundo do poço.

Nesse meio-tempo, Claire volta de viagem e marca um encontro com Bev, depois de esclarecer que ela nunca o traiu. Ele está fora de si, física e psicologicamente, completamente tomado pelas substâncias que consome há meses. Ao lado de Claire, ele volta a se estabilizar, e quem está ausente é o irmão, Elly.

Nos momentos finais e no reencontro dos irmãos, mais um golpe de horror corporal, mas essa parte não vamos contar, para não estragar a surpresa. Tudo que podemos dizer é que esse é um legitimo David Cronenberg, e considerado um dos dez melhores filmes canadenses de todos os tempos, um filme muito além de seu tempo em muitos sentidos. Se você é fã de Cronenberg, ou procura um filme de horror com várias camadas, Dead Ringers é uma ótima escolha para se conhecer ou rever.