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O Presente do Horror

Medo e paixão à obra de Clive Barker

22/11/2024

Algo no nome do Clive Barker me causava muito medo.

Era o ano de 1997 e eu morava em Tibiri II, um bairro operário da cidade de Santa Rita, na Paraíba, cercado por fábricas de tecido. As únicas fontes de entretenimento que conhecia eram os livros que lia na pequena biblioteca pública, as disputas diárias de The King of the Fighters, às quais dedicava as horas que roubava da escola, e os filmes que passavam na TV aberta ou que alugávamos na locadora do Crê.

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Não há muito o que dizer sobre a locadora. Se você nasceu entre os anos 1970 e início dos 1990, provavelmente já frequentou um lugar assim: caixas vazias e grudentas de fitas VHS entupindo as prateleiras das estantes, pôsteres e tótens dos grandes lançamentos do momento, filmes pornô num anexo separado por uma cortina barata, ou numa humilhante e ensebada pasta que os clientes chamavam discretamente de “catálogo”.  

Nos finais de semana, tínhamos todas as vantagens possíveis: alugando três fitas, podíamos escolher uma de cortesia, exceto lançamentos, e só as entregaríamos na segunda-feira — devidamente rebobinadas para não pagar uma multa de 50 centavos, é claro.

videolocadora
Imagem: Jornal A União/Reprodução

Naquela época, meus filmes favoritos eram os de artes marciais estrelados por caras durões como Van Damme e Sylvester Stallone, bem como os de horror, de todo e qualquer tipo. Esse gênero era uma paixão um pouco mais antiga, que havia começado com minha jovem mãe em busca de companhia para assistir A casa das almas perdidas, no Supercine, em 1994, e que nunca deixou de me acompanhar. Na locadora do Crê, os filmes de horror tomavam umas seis ou sete prateleiras de um dos lados da estante do canto, e pra ser honesto, não era grande coisa. Talvez porque num bairro operário cheio de evangélicos, apenas os freaks e os outsiders se sentissem seguros o suficiente para levar pra casa “uma daquelas coisas com inferno no título”, como ouvi certa vez. Embora os filmes de horror de certa forma causassem mais constrangimento nos locatários do que os filmes do “catálogo”, foi a partir dali que tive meu primeiro contato com obras como Necronomicon, Fantasma, Criaturas, A Hora do Pesadelo, e fortaleci, a cada final de semana, minha paixão pelo gênero.

Mas algo no nome do Clive Barker me causava muito medo.

Por algum motivo, desde a primeira vez que li o seu nome na capa de um VHS de Hellraiser, alguma luz interna se acendeu em meu cérebro. Uma luz de alerta, talvez, como se houvesse algo errado com aquele nome. Já tentei racionalizar isso o suficiente para perceber que não vou chegar a lugar nenhum, mas o caso é, pura e simplesmente, que eu tive mais medo daquele nome do que de qualquer outro filme ou imagem que tivesse visto até então. O que aconteceu a partir daí pode parecer estranho para quem me conhece hoje, mas o caso é que eu passei a evitar qualquer filme que tivesse o nome de Clive Barker na capa.

Um dia, é claro, o inevitável aconteceu. Numa locadora com estoque limitado, um cara que leva quatro filmes a cada final de semana em algum momento vai ficar sem opções. Quando isso aconteceu, eu tive que escolher entre o meu primeiro Clive Barker ou algum outro gênero que não me interessava. Respirei fundo, pensei que aquilo era bobagem, que não fazia sentido ter medo de um nome, e levei pra casa Hellraiser – Renascido do Inferno e Hellraiser II – Renascido das Trevas. O que poderia dar errado, não é mesmo?

hellraiser

Lembro claramente daquele dia. Estava chovendo, meus pais estavam no mercado, no centro da cidade, de onde só voltariam ao final da tarde, e minha irmã estava na casa da nossa tia. Lembrem-se: eram os anos 1990, as crianças costumavam ficar sozinhas o tempo inteiro enquanto os adultos resolviam suas coisas.

Como se o universo conspirasse para que um dia eu pudesse contar essa história, eu estava sozinho em casa com quatro filmes de horror, sendo dois deles do tal Clive Barker, que tanto me assustava. Por volta das nove da manhã, coloquei a primeira fita no nosso videocassete SHARP de 4 cabeças, Warlock 2: Armageddon, como se quisesse fazer um aquecimento, e assisti sem interrupções. Quando o filme terminou, comi alguma coisa, voltei para a sala, respirei fundo, coloquei a fita do primeiro Hellraiser, e me deitei no sofá.

O filme começou e, daquele momento até o final, não lembro de ter existido. Quando os créditos começaram a subir, eu me sentia colado no sofá, paralisado, o coração palpitando tão rápido e com tanta força que parecia ter sido transferido do peito para as têmporas. À minha volta, tudo parecia ter escurecido, toda a minha visão periférica havia se reduzido, e de repente eu não me sentia mais só.

hellraiser

Foi como se, de uma hora pra outra, eu tivesse me dado conta de alguma presença, de que algo estava ali, comigo, me acompanhando, esperando apenas que eu virasse o rosto em sua direção para acenar com um sorriso sádico e sujo de sangue e dizer:

“Olá.”

Reunindo toda a coragem que consegui, me levantei do sofá sem tirar os olhos da TV, baixei a cabeça lentamente, ainda sentindo aquela presença — agora somada à sensação absurda de que minha casa respirava —, e segui sem tirar os olhos do chão até o lado de fora.

Como eu disse, chovia; mas não me importei. Nem fodendo eu voltaria a entrar naquela casa antes que meus pais voltassem do mercado. Havia deixado a TV e o videocassete ligados, e a voz do meu pai ecoava em minha cabeça, dizendo que eu tinha que entrar para desligá-los. Ao mesmo tempo, uma parte racional tentava me convencer de que eu estava imaginando coisas. Nada disso me fez voltar. Fiquei sentado na calçada no meio da chuva, amaldiçoando Clive Barker até o final da tarde, quando meus pais chegaram e eu tive que explicar, morrendo de vergonha, que tinha ficado com medo de um filme de horror. Menti dizendo que tinha acabado de acontecer, é claro, e ninguém desconfiou que eu estava ali desde antes da hora do almoço.

Não cheguei a ver o Hellraiser II, tive dificuldades para dormir por algum tempo, e voltei a evitar filmes com o nome do Clive Barker na capa. Algumas semanas depois, eu estava na biblioteca municipal procurando algo pra ler. Eu não tinha muitos critérios naquela época, então basicamente escolhia minhas leituras pelos títulos. Estava calmamente passando o dedo pelas lombadas de alguns livros, à procura da minha próxima leitura, quando meus olhos se fixaram no nome Barker, e eu paralisei completamente. Diante de mim, na ponta do meu dedo indicador, alguns livros dele, um ao lado do outro, em brochuras meio escangalhadas. Eram os Livros de Sangue.

coleção livros de sangue

Hesitante, puxei o primeiro volume e olhei para os lados. A biblioteca estava vazia, exceto pela única bibliotecária entediada na recepção. Lembrei daquele sábado chuvoso, dos dias sem dormir direito, da sensação de não estar só. Por alguns milésimos de segundo, eu quase pus o livro de volta na estante, mas o caso é, pura e simplesmente, que eu queria mais daquilo. Muito mais.

Pelas semanas seguintes, todas as horas que passei na biblioteca foram dedicadas ao Clive Barker. Eu estava deslumbrado por sua imaginação assombrada. Eu encontrava nele um homem permanentemente atormentado por visões de inúmeros infernos e criaturas. Eu me perguntava como ele conseguia dormir à noite, me perguntava se um dia conseguiria fazer algo parecido. Aos poucos, meu medo foi se transformando em paixão, e nos finais de semana, o que passei a procurar foram justamente os filmes com o nome de Barker acima do título. Sua imaginação nunca deixou de me fascinar, fascina até hoje, e sua obra solidificou de uma vez por todas a minha paixão pelo horror. Foi assim que segui, ainda sigo, lendo e assistindo qualquer coisa que tenha o nome do autor.

clive barker

Fico feliz que a DarkSide® Books o tenha trazido de volta não apenas para uma nova geração de leitores, como também para os velhos, como eu, que agora leem, admiram e se assustam com a obra do mestre em edições belíssimas e traduções pra lá de competentes. Já adulto, lembro-me de ter lido a famosa frase de Stephen King sobre ele: “Eu vi o futuro do horror, seu nome é Clive Barker”, e observado mentalmente que hoje podemos dizer que Barker é, há muito tempo, o presente — e um presente — do Horror. 

LEIA TAMBÉM: Clive Barker, um artista completo

Sobre Roberto Denser

Avatar photoEscritor, roteirista e tradutor nascido na Paraíba em 1985. Dono de um espírito inquieto, se formou em Direito, mas já trabalhou como açougueiro, vendedor ambulante de sandálias magnéticas, professor substituto e livreiro. Com um estilo narrativo extremamente pungente e impiedoso, costuma digitar seus textos em máquinas de datilografia, assim como seus maiores mestres. Denser é autor de contos, livros e roteiros, e ministra aulas de escrita criativa. Publicou o romance Colapso pela DarkSide Books.

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