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Camilla Apresentação: “Cores Vivas aborda temas de vivências raciais e abre caminhos para discussões”

Fundadora do perfil Pretas Letradas comenta sobre a experiência de leitura com o livro de Patrice Lawrence.

02/03/2021

Um livro que te prende, te faz solucionar os casos e tem uma abordagem racial bem interessante. É por isso que Cores Vivas vai atingir pessoas pretas de forma diferente. Eles não falam de forma escancarada, mas o personagem principal, Marlon, mora numa periferia de Londres, é preto e sua mãe se estabeleceu numa relação interracial depois que o pai de Marlon morreu. 

O menino é tímido e se esforça na escola, tem 16 anos e tudo estava caminhando bem dentro do seu mundinho até que Sonya, uma menina branca de 17 anos, chega em sua casa sem nenhum aviso. Você questionaria isso caso fosse irmão de um ex chefe de facção do tráfico de drogas, mas Marlon tinha 16 anos e aceitou o convite de Sonya para ir ao parque de diversões. Não só isso, como também abriu mão da promessa à sua mãe de não se envolver com o mundo das drogas e tráfico. No parque, aceitou o ecstasy que Sonya ofereceu e, para completar o bolo, depois de muita insistência da menina, ele guardou para ela 6 comprimidos da droga no seu bolso. 

Quão problemático é andar com drogas eu nem vou discutir, mas para um jovem preto, sabemos que, só por existirmos, nós já somos suspeitos. As ações policiais numa revista, por exemplo, são amplamente discutidas aqui no Brasil. Criando um elo entre Brasil, Reino Unido e África do Sul, trago como comparação a situação dessa última na época do apartheid. A violência na revista policial tem raízes na racista “lei do passe”. Ela obrigava os negros sul africanos a portarem uma caderneta na qual estava escrito onde eles podiam ir. Conforme descreve Steve Biko em “Escrevo o que eu quero”, os pretos, quando interrogados por policiais sobre, era uma situação humilhante e que, às vezes, chegavam a deixá-los nus para fazer a revista. 

O medo de Marlon demonstra esse receio, sua resistência em guardar a droga não se deu só por ele ser um jovem portando ilegalidades, mas também por ele ser preto. Neste livro, toda essa reflexão racial é provocada por Patrice Lawrence, autora da obra.

Mesmo assim, Marlon estava encantado por Sonya e guardou a droga. Não preciso dizer que essa história terminou mal. Eles entraram num brinquedo do parque e, quando saíram, ela não estava mais com vida. A menina loira morreu dentro do brinquedo e Marlon estava com ela e carregava 6 pacotes de bala (além de ter usado uma). A polícia chegou, Marlon estava sob efeito de drogas, o interrogatório foi feito e ele foi para a delegacia. Na obra, é explorado o papel dos policiais na presunção de culpa de um menino preto periférico e como isso faz com que Marlon não os visse mais como “amigos de luta”. Por isso, mais tarde, achou prudente resolver seus problemas com base na “lei das ruas”.

A pressão psicológica que os policiais fazem durante o interrogatório causa uma angústia em Marlon e não resta nele nenhuma vontade de se explicar. Parecia que qualquer coisa que ele falasse não faria diferença. Esse é um sentimento comum a muitas pessoas pretas, até mesmo em discussões sobre negritude, em que alguém te questiona sobre algo mas, na verdade, não quer entender o seu lado. É somente um questionamento, uma provocação. Infelizmente, a polícia tinha esse papel de corretivo social mas, na verdade, Marlon (assim como muitos outros) só se sentiu humilhado. Estar ali como jovem preto, para os policiais, aproximava o menino de qualquer outro bandido.

Isso se relaciona muito também com o funcionamento do retrato falado da vítima no contexto brasileiro. Quantos jovens não são facilmente confundidos e presos inocentemente quando, o único fator que os aproxima dos verdadeiros criminosos são a cor da pele? No Brasil, existe a presunção da não culpabilidade, que é aquela frase que conhecemos: “ninguém será considerado culpado até que se prove o contrário”. Mas, quando você é preto, os casos de prisão de inocentes vêm mostrando que “você só será considerado culpado antes da hora se sua pele for escura”.

Cores Vivas

O livro vai se desenrolando com Marlon, muito corajoso, na minha visão, indo atrás do passado de Sonya. O que essa menina queria com ele? Por que foi atrás dele na sua casa? Acho que é uma trama bem construída que te prende com os “furos de reportagem” que ele vai dando, te liberando informações incrustadas no texto, o que faz você querer sempre prestar atenção em cada detalhe.

Li algumas resenhas que reclamavam do fato de não explorar muito o racismo e a questão policial, mas eu acho que não precisamos ter uma mulher preta escrevendo sobre racismo o tempo inteiro. E, nesse caso, Patrice Lawrence quis escrever uma história sobre um garoto preto do Reino Unido que tenta sobreviver no mundo do tráfico, tentando se desconectar dessas pessoas e proteger sua família, ao mesmo tempo. Tem muitas passagens que ela faz questão de nos provocar certas discussões sobre o relacionamento interracial, a ação policial, a vida nas ruas e a cilada de entrar no tráfico de drogas.

LEIA MAIS: A REPRESENTATIVIDADE NA LITERATURA

A edição está linda demais e isso dá uma animada na leitura. É muito legal também o fato de realmente parecer ter sido escrito por um menino de 16 anos e não soar forçado, com gírias sem sentido. Eu esperava um final aberto, com um suspense para ler uma continuação desse livro, que acho que merecia. Juntando tudo isso, Cores Vivas é uma obra sensacional que aborda temas de vivências raciais e abre caminhos para muitas discussões.

Camilla Apresentação é fundadora do perfil no Instagram @pretasletradas e atua no processo de divulgação de produções literárias pretas e outros conteúdos emancipadores. Nascida e criada em Salvador/BA, como mulher preta nordestina reconhece a importância da troca de informações com a comunidade que escolheu a acompanhar. Em seu Instagram seu intuito é a decolonização de mentes poderosas, por meio do resgate ancestral.

Sobre DarkSide

Avatar photoEles bem que tentaram nos vender um mundo perfeito. Não é nossa culpa se enxergamos as marcas de sangue embaixo do tapete. Na verdade, essa é a nossa maldição. Somos íntimos das sombras. Sentimos o frio que habita os corações humanos. Conhecemos o medo de perto, por vezes, até rimos dele. Dentro de nós, é sempre meia-noite. É inútil resistir. Faça um pacto com quem reconhece a beleza d’ O terror. O terror. Você é um dos nossos.

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