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DarkSide Futebol Club

DarkSide Futebol Club: Sexta-Feira 13

Jogo de hoje: Chapecoense X Sport Recife

13/05/2022

Placar final
por Cesar Bravo

Às portas do vestiário, a ansiedade ia crescendo como uma segunda garganta. Guilherme Lima preferiu continuar aos fundos, sentado, enquanto seus companheiros de time faziam os últimos rituais de aquecimento. De alguma forma, ele sabia que aquela seria uma noite especial. O coração acelerado, a boca seca, os arrepios na pele repetiam isso a cada quinze segundos. Ele estava de volta. Claro que pensava no time, na partida, mas também pensava em tudo o que havia existido antes. A Chapecoense não era mais um time, não para ele. A Chape há cinco anos havia se tornado um exército, uma família, uma nova religião.

— Bora, Lima. Tá na hora — disse Perotti, um dos craques do time.

Lima se levantou e cruzou o peito; elevou os olhos ao teto e murmurou um pedido de proteção.

— Bora.

***

Quis o destino que o jogo fosse realizado na Arena Condá, ali mesmo em Chapecó, onde o time da casa vinha tendo o pior desempenho da segunda divisão (nenhuma vitória, dois empates e uma derrota). Mas o que vinha sendo fácil na vida de um chapecoense? Como todo nascido na cidade, Lima frequentemente pensava nas famílias dos que perderam a vida, mas também pensava nos que sobreviveram ao acidente aéreo. Ainda se lembrava do comboio com os corpos, de toda aquela gente chorando, de toda aquela dor, mesmo entre os sobreviventes. O goleiro que perdeu uma perna e virou cantor popstar, o zagueiro que precisou trocar os campos pela superintendência do time, o técnico de aviação que sobreviveu para desafiar a morte em um acidente de carro e a aeromoça que escreveu um livro e voltou a frequentar os céus. Pensava até mesmo no atacante que seguiu no futebol, e no narrador da Rádio Condá, ali mesmo da cidade, que encontrou a morte em 2019 em um infarto prematuro aos 45 anos, no meio de uma pelada com os amigos. Se existia mesmo um destino, ele passava longe de ser compreendido. E no caso daquelas pessoas, daquelas 6 em 77, o destino parecia ser o próprio enigma em si mesmo.

Os pensamentos logo foram arrastados pelo apito estridente do juiz. O que importava agora é que Lima estava de volta. Depois de ser descoberto ali mesmo, de ter batalhado um espacinho entre os camisas verdes e percorrido tantos outros clubes, ele finalmente tinha a chance de reescrever a história da Chape.

Apesar da aparente urgência do árbitro, os primeiros passos dos jogadores dos dois times foram lentos e morosos; as primeiras respirações, contidas. A temperatura não era terrível, mas treze graus com uma sensação térmica de oito era o suficiente para esfriar qualquer corpo. Frio esse, uma coisa boa para aquela noite (que Lima soubesse, pernambucano nenhum gosta de sentir frio nas pernas). Ainda assim, nos primeiros dez minutos, não aconteceu nenhuma ameaça visível nas traves do Sport, mesmo com a Arena gritando como se estivesse cara a cara com Mailson, o goleiro do Leão.

Como todo torcedor daquela turba incansável, Lima também conhecia o time de Recife. Fez questão de conhecer, de estudar, de identificar os pontos fortes. Ele sabia que o Sport vinha fazendo fila fora de casa, e que o meia Giovanni estava de volta e confiante em vencer de novo. Mas Lima também sabia que aquela cidade gélida merecia um pouco de comemoração. Desde a tragédia do voo 2933, toda nova partida era assim, um tudo ou nada, um renascer das cinzas para o mais aclamado time de futebol de Santa Catarina.

E tudo voltou ao segundo plano com a aproximação da bola.

Naquela noite, ela, que sempre fora o passaporte de Lima para o lado bom da vida, parecia apenas uma coadjuvante. Trocando de chuteiras, quicando e rolando, passando depressa de um lado a outro.

— Acorda, Lima! Porra! —gritou o volante Betinho.

E a bola já estava longe, habilmente escoltada pelo homem de vermelho e preto que se interessava por ela. Giovanni e a bola seguiam depressa para o lado do verdão, o goleiro João Paulo já espalmando as mãos e esperando o chute. Giovanni avançando, tirando o meia da Chape em uma ginga, o zagueiro em uma finta, e então Victor Ramos da Chape levantando poeira e grama até chegar às pernas do adversário. O tumulto rapidamente se formou, com cinco ou seis jogadores testando a dureza de seus externos. O nervosismo aumentando, as provocações brotando como mato. Lima, atento ao jogo de novo, iniciou uma corrida até a confusão, mas acabou contido pela gritaria da Arena. Em um ato reflexo, olhou pra trás, então viu aquele rapaz correndo.

O jovem era a coisa mais loira que ele já tinha visto. Também era magro, tinha uns poucos cabelos finos, e vestia jeans e uma camisa da Chapecoense. Aquele magrelo corria mais que os atacantes do time adversário, e estava galopando na direção de Lima. 

Como não poderia deixar de ser, Lima armou o punho, se preparando para qualquer agressão. O mundo andava cheio de malucos, de revoltados, de gente sem escrúpulos ou tempero. À cinco metros, o rapaz mudou a rota com uma guinada para um lado e deixou o segurança na saudade, depois foi para o outro, driblando o segundo segurança que por pouco não o apanhou. “Limaaaaaaa”, ele gritou e Lima chumbou as pernas no chão, se preparando não mais para um soco, mas um abraço violento. Foi quando, um segundo antes, um terceiro segurança surgiu pela perpendicular e conseguiu derrubar o rapaz. A Arena inteira lamentou, gritou, suspirou como se tivesse tomado um gol. Lima caminhou até o jovem.

— Lima… Lima! — o rapaz gemeu. Ainda era só um menino, um desses garotos que passa a infância sonhando em usar uma chuteira na Arena Condá.

Lima não perdeu um segundo pensando; estendeu a mão ao rapaz e o tirou do chão. Disse para os seguranças que estava tudo certo. O rapaz ainda aparentava algum pânico nos olhos, uma urgência indiscutível.

— Respira, homem — Lima brincou com ele. Não era muito distante de seus 23 anos, o garoto devia ter uns 16.

— Tenho um recado! Recado da sua vó! — o rapaz disse e o abraçou forte. 

Lima tentou se desvencilhar. Falar de sua avó não era pedir um abraço, ou tirar uma foto, ou chegar perto de um ídolo. Era simplesmente trazer um monte de dor de volta. Dia das Mães havia sido no domingo, um dia em que ele e a mãe sempre se lembravam dela.

— Me solta, pô! Já deu! — Lima disse. O rapaz, grudado nele, a boca bem perto do ouvido direito.

— No fim do segundo tempo, Lima…! Corre pra frente! Corre pra cima do zagueiro. Você bate a falta!

E o segurança deu um segundo mata-leão no rapaz. Mesmo contido, mesmo sem ar, ele ainda gritou:

— Bate a porra da falta! Bate a porra da falta, Lima!

Depois se rendeu à escolta e seguiu com ela. Dessa vez, a Arena se irritou com a demora e ofereceu uma vaia. O rapaz estava na beira do gramado quando girou o corpo e gritou:

— Aos 38, Lima! Aos 38!

O segundo tempo começou com dois zeros no placar. Lima ainda estava em campo, mas sentia a perna direita fisgando a cada três ou quatro passos. O técnico titular Gilson Kleina possivelmente o teria substituído, mas quis o destino que Gilson estivesse suspenso naquela partida, depois de tomar três cartões amarelos. 

Aos 20 minutos, Lima seguia compensando a si mesmo, com um olho na bola e outro no placar. A torcida estava quieta desde os 40 minutos do tempo anterior, um silêncio terrível, quase pior que tomar um gol. Uma multidão calada é uma multidão com medo, o que sempre é um mau presságio na política ou em uma partida de futebol.

Aos 28, Jonathan enfiou uma bola na trave. A torcida acordou, suspirou, e voltou a dormir. Jonathan abriu e fechou os braços em um triplo bater de asas, a torcida respondeu com um murmúrio rouco, um trovão distante. Estavam vivos, claro que sim, mas também sentiam que alguma coisa invisível tomava conta daquele estádio. Mais uma vez, Lima se lembrou do time que fez a Arena se sentir invencível, e a lembrança o levou de volta para aquela noite horrível.

Uma hora antes da queda do avião, a Globo exibia “Voo de Emergência”, um filme de suspense (depois alguém disse que a vida dos pilotos do filme e do avião acidentado eram parecidas, além da falta de gasolina nas aeronaves). Bruno Rangel, artilheiro da época, tinha 77 gols, o mesmo número de pessoas no avião que caiu. Além disso, existia o que os jornais não mostravam, e essa era a parte que realmente assustava Lima. Filhos que imploraram para os pais não embarcarem, mães que tiveram um acesso de choro inexplicável horas antes do avião cair. Na cidade, uma médium disse que “Tudo era ação e reação, e que Chapecó perderia sua luz”. Três dias antes do acidente, três familiares de falecidos tiveram sonhos terríveis e premonitórios.

O tempo caminha depressa quando não estamos prestando atenção a ele, e quando Lima voltou a pensar na realidade, o cronômetro já marcava 37 minutos e a torcida estava novamente acordada:

“Vamos, Chapeeeee, nós te apoiaremos até morrer,
Vamos, Chapeeeee, nós te apoiaremos até morrer.”

Mas deveria ele se vergar a mais uma previsão? Se Lima saísse agora, correndo, demoraria cerca de um minuto para chegar perto da área adversária, exatamente aos 38. Por outro lado, se ele fosse caminhando, bem devagar, não chegaria nesse tempo. Era uma boa forma de testar o destino, de não se sujeitar a ele e aos seus desastres prerrogativos. E foi assim que Lima começou sua caminhada arrastada.

No terceiro passo, o técnico reserva gritou à beira do campo. “Porraaaaa, Limaaaa”. Em dez segundos, um companheiro de time passou ao lado e perguntou o que ele estava fazendo. Em mais cinco, do outro lado do campo, perto da área da Chape, o ataque impiedoso do Sport ameaçou abrir o placar. Lima seguia caminhando, o relógio em 37’45”. Então o apito e uma nova falta paralisando o jogo, na linha de defesa do verdão, a favor da Chape. Lima seguiu caminhando no mesmo ritmo, no mesmo fluxo. O relógio parado, então o apito do árbitro. O relógio recomeçou e chegou aos 38. E Lima, mesmo devagar, acabara de chegar perto do último zagueiro, exatamente como havia sido previsto pelo rapaz. O zagueiro com a camisa do Leão o observou, mas não deve ter enxergado uma ameaça. Lima parecia ausente, mas a verdade é que, naquele momento, ele tinha percebido que o destino vencera sua pequena aposta: ele estava lá, mesmo tendo se arrastado, aos 38. Lima olhou para o holofote da direita, desceu os olhos aos torcedores e se emocionou com toda aquela gente. Então começou a correr na direção do zagueiro. Seguindo o plano do rapaz torcedor, a bola também pareceu saber exatamente o que fazer, já que cruzou o campo, quicou e acabou parando dois metros à frente de Lima. Ele alcançou a bola, mudou a rota e disparou em direção ao gol, e ele nunca correu tanto como naquela sexta-feira 13. Em um relance, viu o zagueiro já vencido e confuso, incapaz de ameaçar sua subida ao gol. Foi quando Lima tomou uma pancada pelas costas, aos 38’44”.

Depois do apito do árbitro, Perotti, artilheiro da Chape, tomou a bola pra si. Ele já estava a colocando no chão, olhando na direção do gol e se preparando para cobrar. Era o melhor aproveitamento, o cara que treinava depois que todos os outros jogadores iam pra casa. Perotti era a escolha para a bola parada.

— Essa é minha — Lima disse a ele, enquanto a barreira do Sport se ajustava

— Tá maluco? — Perotti o confrontou. Não por vaidade, não por ego, mas por eficiência. Ele treinou. Conhecia a bola e conhecia o campo. Daquela distância acertava sete chutes em dez.

Lima sustentou o olhar firme.

— A gente não fez gol até agora, eu tô com pressentimento — disse.

— Pressentimento não ganha jogo, porra — disse Perotti.

Lima alongou a coxa e disse:

— Aqui é Chapecó, irmão. A gente sabe que o que acontece aqui, só acontece aqui. O magrelo que invadiu deu um recado. Ele sabia que ia ter essa falta bem aqui, e bem aos 38. Como ele podia saber disso?

— Eu não acredito nessas coisas.

— Você não. Eu não. Mas e eles? — Lima olhou ao redor, para a Arena Condá que parecia ter um grito preso na garganta desde aquele novembro de 2016.

— A gente sabe que eles merecem. Deixa eu bater. Eu tô sentindo um negócio.

Perotti esfregou os braços e enxugou o canto dos olhos discretamente. Ele não sabia o que era, o que sentia, mas sabia que, sim: ele sentia. O próprio Perotti ajeitou a bola e deu um tapinha nos ombros do companheiro, autorizando a coisa toda. Perotti caminhava de costas para a cobrança quando ouviu o apito do juiz. Ainda estava de costas quando ouviu o grito ensurdecedor do estádio, e continuava assim quando viu os companheiros sorrindo e correndo em sua direção. Então ele dobrou os joelhos e agradeceu aos céus. Perotti, Guilherme Lima, o técnico substituto, ninguém sabia como aquela partida iria terminar depois dos sete minutos faltantes, mas sinceramente, isso não fazia a menor diferença.

O grito saiu, a Chape viveu.

“Vamos, Chapeeeee, nós te apoiaremos até morrer,
Vamos, Chapeeeee, nós te apoiaremos até morrer.”

Sobre Cesar Bravo

amplificador cesar bravoCesar Bravo é escritor, criador de conteúdo e editor. Pela DarkSide® Books, publicou Ultra Carnem, VHS: Verdadeiras Histórias de Sangue, DVD: Devoção Verdadeira a D., 1618 e Amplificador.

1 Comentário

  • Sandra de Araujo

    14 de maio de 2022 às 16:15

    Chorei do início ao fim do texto!

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