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DarksideEntrevista

Irka Barrios: “Na minha ficção há muito dessa raiva de ser mulher num mundo com tanta injustiça”

Confira a entrevista da autora de Vespeiro

24/10/2023

“Paula esconde o corpo que Verena trucidou. E eu? Onde entro? Acho que posso contribuir atraindo a vítima.” É dessa maneira descontraída (e levemente perturbadora) que a autora Irka Barrios define seu papel de escritora publicada pela DarkSide®, ao lado de Verena Cavalcante e Paula Febbe, autoras de Inventário de Predadores Domésticos e Vantagens que Encontrei na Morte do meu Pai, respectivamente.

LEIA TAMBÉM: LANÇAMENTO: VESPEIRO, POR IRKA BARRIOS

A vencedora do Prêmio Jabuti estreia na DarkSide® com Vespeiro, uma obra que reúne contos da autora e que atinge os leitores com a força de milhões de ferroadas. Em conversa ao DarkBlog, Irka Barrios comentou sobre suas inspirações para suas obras, literatura e a relação da escrita com a profissão de dentista. Conheça um pouco mais desse verdadeiro vespeiro de ideias:

DarkBlog: Primeiramente gostaríamos de desejar boas-vindas; é um prazer enorme conhecer a criadora de tantas histórias incríveis. Pode nos contar um pouco sobre como surgiu seu interesse pela ficção? Mais especificamente pelo gênero horror? 

Irka Barrios: De início, quero agradecer a oportunidade e dizer que estou animadíssima para essa nova fase, uma aventura DarkSide na minha carreira. É uma alegria estar aqui, junto com DarkSiders que tanto gosto. 

Meu primeiro fascínio pelo horror aconteceu na infância e foi através do audiovisual. Sou apaixonada por filmes de terror, todos, desde os terrorzinhos shopping-center até terror cabeção, passando pelos filmes perturbadores, do tipo que nos deixam dias com cara de quem foi atropelada por um caminhão. Mas é claro que eu sempre fui medrosa, então assistia e depois ficava três noites em claro, enchendo o saco dos meus pais (risos). Eu também fui uma criança muito preocupada com a morte. Lembro de me consultar com psicóloga e tudo, minha mãe meio apavorada com as perguntas que eu fazia. 

Hoje penso que meu interesse num possível mundo sobrenatural poderia ser uma busca para compreender a morte. Cresci rodeada pelas mais variadas religiões e com um pai ateu. Talvez por isso eu nunca tenha me aprofundado em nenhuma. Mas a lacuna da descrença ficou. E às vezes provocava uma coceirinha. 

Quanto à literatura de horror, demorei mais a me apaixonar. Buscava na leitura as mesmas sensações que eu experimentava no cinema. Só depois de adulta, formada como leitora de latino-americanos, percebi que a experiência de leitura de horror ativa outras sensações. Desde então não passo um mês sem ler ao menos um conto de horror.

Na escrita, foi parecido. Demorei a compreender e aceitar minha forma mais alegórica de contar uma história. Passei por inúmeros processos. Na adolescência escrevia pensamentos (tinha uma agenda que se tornou “caderno de pensamentos”), poemas, trechos de cenas, em geral imitando Gabriel García Márquez, o autor que mais li e reverencio. Passei pela escrita intimista, até que compreendi o modo com o qual me comunico melhor. Compreendi que o que me toca são imagens ligadas ao insólito, e que isso dispara o desejo de criar uma história. 

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D: Quais são suas principais motivações ao escrever uma história? De onde vem a inspiração para compor narrativas tão impactantes?

IB: A inspiração vem, acho, da vida. Do assombro frente ao absurdo da realidade. Eu, hoje, consigo perceber quando um conto vem. É uma imagem que passa a me perseguir. Eu durmo, acordo, e a imagem lá, querendo saltar da imaginação para o papel. Nos tempos pandêmicos isso aconteceu muito, eu escrevi diversos contos. Teve mês que era um por semana. Agora os assombros deram um tempo. Vamos ver até quando. No momento, ando com a imagem de uma criança que se acidenta na pracinha. Aos 6 anos, eu caí e desconjuntei o braço esquerdo, na altura do cotovelo. Essa “eu”, com o braço mole, tem me visitado de uns tempos para cá.

D: Sabemos que além de mestra em letras, você também é dentista. Qual a relação entre essas duas vertentes profissionais tão distintas em suas histórias? Elas chegam a se complementar? Ainda nessa questão, como foi o translado entre essas áreas tão diferentes?

IB: Elas se complementam porque uma me relaxa da outra. A rotina do consultório é muito prática e exige conhecimentos técnicos adquiridos há tanto tempo que repito quase mecanicamente. Mas não é só isso, a interação com as pessoas também pode ser fonte de inspiração. Conversar, trocar ideias, contar uma situação, discutir sobre uma notícia de jornal, tudo isso é riquíssimo para uma escritora. Sabemos que as histórias de horror, mesmo falando de monstros, estão, na verdade, falando de pessoas, de relações humanas. A escrita, minha segunda profissão, exige mais concentração, um exercício intelectual. Exige leitura e releituras. Gera outro tipo de cansaço, do qual se relaxa com atividade física. E tratar os dentes de alguém não deixa de ser uma atividade física. E tem outro detalhe: a leitura em tela de computador piorou muito minha visão. Mais um motivo para eu curtir essa jornada dupla. 

D: Conte-nos sobre suas primeiras mestras e seus primeiros mestres de escrita, quem inspirou e ainda inspira Irka Barrios a escrever histórias tão únicas?

IB: Gabriel García Márquez e Lygia Fagundes Telles, uma brasileira e um colombiano foram as pessoas que me tornaram uma apaixonada pela leitura. Me apaixonaram e me intimidaram. Porque é intimidador rascunhar umas palavras com os livros desses dois na cabeça. Depois que abri o leque de leituras, descobri outras possibilidades, igualmente interessantes. Ler contemporâneos nos encoraja porque é a nossa tribo, um olhar parecido. Leio muito a produção nacional. 

Eu tenho um gosto bem amplo, hoje sou encantada por Olga Tokarczuk, Annie Ernaux e as latino-americanas. Estou lendo Giovanna Rivero (ela vai ao Brasil em novembro e recebi a honra de mediá-la). A força na escrita de Giovanna é uma coisa comovente. Ando apaixonada pela literatura dela. Também quero citar outros mestres importantes: Luiz Antonio de Assis Brasil e Amilcar Bettega. Além de professores e amigos, são escritores que admiro. 

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D: Já soubemos que você deu uma “esticadinha” até a lendária Feira do Livro de Frankfurt. Como surgiu o convite, e como está sendo essa experiência? Como você avalia o alcance da literatura brasileira e o interesse por nossos autores em outros países?

IB: Respondo a essas perguntas em solo alemão, por isso falo com a adrenalina correndo no sangue. Recebi o convite da escritora Patrícia Gonçalves Tenório, em dezembro do ano passado. Desde então venho me preparando para falar. Patrícia é uma mulher admirável, que leva no peito a escrita criativa brasileira. Como pesquisadora em Escrita Criativa (sou mestre e doutoranda-UFRGS) considero um passo e tanto para o nosso país. O grupo tem oito pesquisadores, cada um falará de sua experiência e seus objetos de estudo. Acredito que será uma linda tarde de trocas. A respeito do interesse sobre autores brasileiros, eu não tenho condições de avaliar. Mas daqui a uma semana, assim que nossa fala acontecer, dependendo das reações das pessoas presentes, poderemos avaliar o interesse sobre a literatura produzida no Brasil. 

D: Certa vez uma colega de escrita me confidenciou que Irka Barrios aparenta muito autocontrole, mas que nos textos é uma verdadeira carniceira. Defenda-se por gentileza. Aproveitando o momento, conte um pouco sobre como esses elementos mais sangrentos contribuem para suas histórias. 

IB: Quando recebi o convite para integrar o time Darkside, pensei “incrível, a Dark tem a Verena, uma força da natureza. Verena mata a pauladas, ou machadadas, ou facadas; e a Dark tem a Paula, criadora de personagem metódica, fria. Paula esconde o corpo que Verena trucidou. E eu? Onde entro? Acho que posso contribuir atraindo a vítima. Posso ludibriar e conduzir ao local do abate. (Risos)”. 

Penso que o sangue, nas minhas histórias, é o meu próprio sangue (ou o da personagem). Quando é sangue de vítima o ataque foi provocado com a intenção de vingança, ainda que seja uma vingança torta, mal direcionada. É inevitável que eu trabalhe o body horror, que é um dos temas caros à minha produção. Neste caso, busco explorar os limites do corpo, o descontrole do corpo, a impossibilidade de controlar uma máquina que achamos que nos pertence. 

D: Seu conto “Sandra não tem dedos” que abre Vespeiro é de uma inventividade absurda, e se torna impossível não notar dilemas femininos, tanto nessa quanto em outras histórias que compõem o livro. Como você avalia o universo feminino em seus textos? 

IB: Eu acho que na minha ficção há muito dessa raiva de ser mulher num mundo com tanta injustiça. Não que eu escreva direcionada para dizer ou mostrar isso. Mas a revolta, de alguma forma, salta para fora do texto uma hora ou outra. No caso de Sandra, o conto veio inteirinho na forma de sonho. Só tive o trabalho de organizar e passar para o papel, sem refletir sobre o que eu queria dizer. Depois, nas edições, ficou claro que ali, no mundinho da personagem, há imposições, limitações, preconceitos. A imagem final fala da condição de alguém (alguéns, muitos alguéns) que todos os dias tem que sair para a rua e lutar, se impor, enfrentar monstros que ameaçam e (por vezes) devoram. 

D: Sabemos que você é uma romancista e que inclusive foi finalista do Prêmio Jabuti com seu livro Lauren. Mas como contista, qual o valor das histórias mais curtas? 

IB: Eu sou encantada por histórias curtas. Pela economia e precisão necessária para contar o máximo que se deseja utilizando um número restrito de palavras. É como o Big Bang, o máximo de energia que se concentrou para explodir dentro da cabeça do leitor. Um bom conto não nos abandona. Segue com a gente e, nas situações mais inusitadas, reaparece na memória. Eu também gosto de escrever romance. De escrever, de ler, interpretar. O romance, entretanto, segue um roteiro mais tradicional porque está intimamente ligado à forma humana de contar histórias. Enquanto o conto me parece uma massa que pode ser acomodada em inúmeras formas. Pode ser linear, anguloso, multifacetado. Pode espetar ou, como defendia Cortázar, nocautear. Penso que o conto tem uma capacidade subversiva maior.

D: Sabemos que toda boa escrita de ficção possui uma boa base de verdade, de “vida real”. Como é feito esse trabalho de pesquisa em seus livros? Quanto tempo você demorou para compor Vespeiro

IB: Eu sou um bichinho curioso, então saio abrindo abas e mais abas no Google. E também sou boa de papo, boa ouvinte. E cara de pau. Vou lá e pergunto, investigo mesmo. 

Para compor Vespeiro, fiz uma seleção de contos produzidos nos últimos anos. Tem alguns mais antigos, de quase dez anos atrás, mas a maioria deles é bem recente, safra 2022/2023. Todos têm muito de mim, de meu assombro frente a determinadas situações. Em alguns percebo um olhar mais fresco, mais jovial, em outros, um olhar mais cansado. E tem uns contos que carregam meu olhar de fúria. 

D: Se você pudesse deixar um conselho para uma escritora iniciante, um caminho das pedras para alcançar uma publicação tradicional, qual seria ele?

IB: Seja grande e seja pequeno. É um conselho copiado de meu mestre Assis Brasil. No momento da criação, seja grande: acredite que você está escrevendo a melhor obra, a que vai revolucionar a literatura. Depois da primeira versão pronta, seja pequeno. Tenha a humildade de aceitar críticas, saiba reconhecer e abraçar suas fragilidades, e, principalmente, compreenda que o mundo é vasto e diverso. Sempre há alguém que já tratou de tema semelhante, algumas vezes com uma abordagem mais interessante que você. Saiba ouvir seus pares e a editora para quem você confiou seu original. 

Fora isso, sugiro o básico do básico: leia muito, tudo o que estiver ao seu alcance, autoras de perto e de longe, e dos mais variados gêneros.

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D: Existe uma batalha por espaço bastante selvagem nos dias de hoje, dentro e fora da escrita. Você enxerga que na atualidade a balança feminina/masculino está mais próxima de um equilíbrio?

IB: Tentei falar um pouco sobre esse assunto no discurso que trouxe para a Feira de Frankfurt. Também abordei esse tema num texto recém-publicado sobre o movimento. Um grande dia para as escritoras. Percebo avanços importantes. E os mais importantes, no campo da escrita, ocorreram de uma década para cá. Inserir escritoras no mercado é também uma questão cultural. Num passado bem recente acreditava-se que mulheres escreviam sobre temas menos importantes e, por isso, poucas recebiam o privilégio de chegar ao grande público. Essa mudança de olhar, por parte do mercado e da mídia especializada, foi conquistada meio a facão. Não fossem iniciativas como o Leia Mulheres, o Mulherio das Letras e outras, estaríamos em menor evidência. Hoje posso citar inúmeras autoras que escrevem livros me fizeram refletir, livros que não me agradaram ou livros que me serviram de diversão. Exatamente como classifico livros escritos por homens. Gosto de afirmar que não leio mulheres como protesto, ou obrigação, ou gesto de solidariedade. Leio mulheres porque elas estão mandando muito bem.

IB: Não é raro que um criador de ficção seja questionado sobre a inserção de minorias, ou pressionado a diversificar os grupos sociais e escolhas de gêneros em seus textos. Você enxerga essa inclusão como uma obrigatoriedade válida? Ou em sua opinião a autora/autor não deveria ter essa preocupação no ato da escrita?

IB: Na minha humilde opinião, o criador não deve ter obrigatoriedade alguma. Defendo que a literatura não é lugar para hastear bandeiras. Porque, enquanto escritores, buscamos explorar sentimentos humanos. E não há humano totalmente bom ou totalmente ruim. Os melhores livros têm essa capacidade: nos colocar, enquanto leitores, num lugar de empatia. Empatia e dúvida, um lugar de questionamentos éticos e morais. O incrível da literatura é a capacidade de nos colocar neste lugar de incerteza. Se o autor entrega uma história perfeitinha (o bem X o mal) o leitor não terá dificuldade alguma em escolher um lado. Defendo que as histórias precisam desacomodar. 

Por outro lado (sempre há o outro lado), não há controle algum sobre a recepção da história. Leitores podem se sentir incomodados, ofendidos ou até mesmo arrasados com as atitudes e destino de personagens que criamos. O que dizer quanto a isso? A história, depois de publicada, pertence ao leitor. É ele que se conecta a ela. Se odiar, reclame, jogue fora, feche o livro. E os autores que lutem para manter o equilíbrio emocional se forem ofendidos ou cancelados. (Digo e saio correndo pra debaixo da cama).

D: Existe um limite para a ficção de horror? Se existe, qual seria esse limite?  

IB: Não existe limite. O horror existe para ameaçar, chocar, causar nojo, revolta, raiva. Se retirarmos essa característica tão crucial, deixa de ser horror. 

LEIA TAMBÉM: CESAR BRAVO: “O SOM DE DOR CHOCA MAIS DO QUE IMAGENS OU ATÉ PALAVRAS”

Sobre DarkSide

Avatar photoEles bem que tentaram nos vender um mundo perfeito. Não é nossa culpa se enxergamos as marcas de sangue embaixo do tapete. Na verdade, essa é a nossa maldição. Somos íntimos das sombras. Sentimos o frio que habita os corações humanos. Conhecemos o medo de perto, por vezes, até rimos dele. Dentro de nós, é sempre meia-noite. É inútil resistir. Faça um pacto com quem reconhece a beleza d’ O terror. O terror. Você é um dos nossos.

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