Por Anne Quiangala
Até hoje eu lembro da sensação que foi assistir ao seriado Buffy — A Caça-Vampiros: estranhamento (porque aquela garota salvava o dia) e inspiração: saí mais corajosa dali. Poderia dizer que só se trata de um efeito duradouro, mas o livro Horror Noire: A Representação Negra no Cinema de Terror me deu um panorama incrível do que isso significa. Eu e meus primos passávamos o verão na casa da nossa avó brincando de qualquer faz-de-conta, mas assistir aquele episódio mudou radical e definitivamente o rumo das nossas brincadeiras. Em vez de imitarmos os grandes heróis de Power Ranger, todo mundo queria ser uma caça-vampiros. Lembro nitidamente das lascas de caixote lançadas em direção ao pé de cajá que confere a presente sensação de insight. Costumo dizer que foi ali que eu me tornei uma feminista.
Durante muitos anos, passar a madrugada sozinha maratonando Buffy — A Caça-Vampiros foi o meu tipo aventura, até o momento em que percebi que “o que parece errado provavelmente está”. Naquele tempo, guardei para mim a sensação desagradável de que jamais haveria espaço para uma pessoa como eu naquele programa televisivo. A esperança era a de que, com a morte de Buffy, Kendra substituiria, e, finalmente haveria uma protagonista (mesmo que por poucos episódios) tão forte e diferente de tudo que eu tinha visto. Infelizmente, a esperança morreu: ela foi morta da maneira mais ridícula possível. Na época, pensei que talvez a Kendra estivesse ali para ensinar a pessoas como eu que é muito provável que a gente morra primeiro quando os monstros aparecem.
Muito provavelmente a série de tv abriu um portal para o meu mundo interior, não da forma ideal, mas da maneira possível. Não entendi por que eu estava tão atraída por aquela sensação de medo, interesse pelo cenário noturno no cemitério, mas eu simplesmente não conseguia desapegar de tudo isso.
Durante a adolescência, obviamente não conhecia ninguém que gostasse das mesmas trasheiras que eu, então eu acredito que até o momento em que eu bati os olhos no site de Ashlee Blackwell, provavelmente como muitas garotas e jovens mulheres devem ter sentido, acessei formalmente o silencioso peso de nunca ter me visto nesse tipo de gênero antes. Apesar disso, mesmo sem respectiva, eu escrevia as minhas próprias histórias e roteiros de quadrinhos, até comecei uma pesquisa independente sobre a literatura gótica. Separar a minha identidade negra do gótico foi um processo muito natural, assim como o relativo empoderamento absorvido da caça-vampiros “principal”, que vem da consciência racial e de gênero com a qual aprendi a ver o mundo desde sempre. Então, diferente dos rapazes do Almanaque Gótico (a revista na qual eu escrevia), eu não era uma gótica, mas escrevia textos góticos. Nada disso me dava uma real perspectiva do que seria o futuro, pois os grandes nomes do terror que eu conhecia até aquele momento eram ou homens brancos europeus, ou Emily Brontë e Anne Rice.
A partir de tudo isso, comecei a aprender mais sobre o terror escrito por contemporâneas que fossem brasileiras e racializadas como a Giulia Moon e, posteriormente, a Nazarethe Fonseca. Ver modelos de escrita e autoria que fugiam daquele padrão ampliou bastante a minha compreensão do que significa o pavor, o horror e nojo, e sobre o que significa a cultura gótica. Maria Firmina dos Reis foi inclusive uma autora negra que eu poderia ter conhecido tanto quanto Álvares de Azevedo, mas o apagamento é mesmo a raiz do problema.
Com isso, quero chegar ao ponto em que sempre estava posto para mim que existia o modo de consumir e o modo de olhar a experiência de medo que eu não havia elaborado e sequer conhecia pelo nome, mas que fazia total sentido para mim. Também aprendi que, muito melhor do que ser estraçalhada para mostrar a letalidade do monstro ou ser codificada como tal, era simplesmente não aparecer na tela. Agora imagine se, em vez de O livro dos vampiros: o manual dos mortos-vivos, a minha enciclopédia fosse Horror Noire? Quanto tempo e desilusão eu teria poupado?
Bem, não vamos pular etapas. O fato é que eu não me via em nenhum lugar, mas tinha minhas próprias ideias que não eram compartilhadas por ninguém que eu conhecesse, tanto que uma das perguntas que me fizeram, certa vez, foi “aonde o terror vai te levar?”. Havia um ar perverso na voz de quem emitiu, porém me fez colocar um binóculo para ver o que viria depois de tudo aquilo que eu fazia. Agora já posso dizer que o terror me trouxe aqui à revisão técnica de um clássico do Horror Negro que preenche lacunas que roubam tempo de pessoas como eu, pretas e nerds.
Clássico, aliás, publicado pela editora especializada em terror no Brasil, a DarkSide. É muito animador ver no catálogo uma obra que abre caminho para a popularização dos estudos do horror sob perspectiva negra. Horror Noire é uma obra imprescindível para pessoas negras observarem que, independente do quanto nossas experiências e perspectivas sejam apagadas, nós estamos, estivemos, estaremos em todas as áreas do conhecimento e da cultura. Tendo em vista esse fato, é interessante destacar o quanto o trabalho de professora da dra. Robin Coleman se destaca como um documento histórico, e material de estudo para qualquer pessoa interessada em conhecer um pouco mais sobre a realidade e ficção produzida por pessoas negras aficionadas pelo horror, e não apenas isso: acessar aspectos subjetivos da experiência negra ficcionalizada de forma sombria.
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Tenho que destacar que a professora Coleman, a partir do livro, deu nome à experiências como a minha, e tornou acessíveis reflexões complexas sobre negritude, cinema e gênero sem excluir ninguém, pois a leitura fluida, desperta curiosidade interesse e conexão. Quando recebi o convite para ser revisora técnica de Horror Noire, eu fiquei paralisada porque jamais imaginei esse livro aqui, acessível, em português! E, por trás dos meus olhos, aquela experiência de lançar lascas de caixote na árvore vieram à mente e ao coração, pois haveria uma pista melhor sobre “para onde o terror me levou”.
Levou para o cenário no qual eu era atraída pelo tipo de filme que, provavelmente me colocaria na pior situação possível. Claro, os filmes B acessíveis lá em Vila Velha, no Espírito Santo, cerca de 15 anos atrás não eram os filmes de horror negro que eu pude acessar enquanto lia esse maravilhoso livro. Inclusive, o exercício de ler e assistir a cada um dos títulos é um exercício de interiorização muito importante, mesmo para pessoas que não sejam fãs, mas sobretudo para nós que amamos o gênero. O horror nos ensina muito sobre nós mesmas. De certa forma, eu era atraída por esse tipo de filme e quadrinho como uma vítima típica dos produtos, uma vítima pela qual torcemos e enviamos pensamentos de alerta para que não entre naquela casa, não abra aquela porta, não vá para floresta… E cá estamos, porque é magnético, porque precisamos ir aprender algo a descobrir seja lá o que for.
Como revisora técnica, revisitei uma história que me foi negada e que, no fundo, a intuição dizia que era o caminho certo a seguir. Verdade que talvez eu conheça muito mais da história do horror e do gótico numa perspectiva branca que não representa a minha, mas ainda assim, sinto que através da leitura de Horror Noire, eu tive oportunidade de ir lá no passado e recuperar um conhecimento que eu não tive acesso tão completo, organizado e cuidadoso antes. O mesmo movimento de sankofa (quer dizer, de voltar ao passado e recuperar algo que foi perdido ou deixado para trás) foi feito pela pesquisadora Robin Coleman ao produzir este livro em que a história do horror numa perspectiva negra é contada do século XIX até os dias presentes.
Talvez, o maior desafio técnico em relação ao projeto tenha sido acessar a noção do vácuo em que eu estava todo esse tempo, tipo aquele do Chris em Corra!, porque eu não tinha uma elaboração realmente concreta e precisa do porquê eu estava entrando naquela casa, abrindo aquela porta e indo para floresta, mas o livro funcionou como uma mola propulsora do meu futuro. Agora sim, posso dizer que, depois de ler Horror Noire, eu decidi me aprofundar nos estudos do horror negro e, com isso, o meu projeto de doutorado se desenhou de modo a ter uma resposta final: agora eu sei o horror me trouxe até aqui.
Anne Caroline Quiangala é idealizadora do Preta, Nerd & Burning Hell – um blog sobre #nerdiandade Preta e Feminista desde 2014. Tudo começou com o desejo de compartilhar o processo de pesquisa ao longo do mestrado em literatura, mas o projeto se tornou muito maior: a identificação do público trouxe mais perspectivas até estruturar uma equipe super diversa interessada em entregar conteúdo crítico e propor discussões profundas sobre cultura pop com embasamento teórico.
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