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Para tornar visível o Sagrado Travesti

Reflexões sobre nossa luta e identidade

29/01/2022

Começo pedindo a benção para minhas ancestrais travestis, vivas e mortas: Anyky Lima, Cintura-Fina, Rhany Mercês, Rubi, Sônia Sissy Kelly, Xica Manicongo. Salve as forças das senhoras. 

Dia 29 de janeiro é o dia da visibilidade trans e travesti. Não sei se posso chamar de uma data comemorativa, afinal, o que temos para comemorar? Pelo menos no que tange ao Brasil, só realmente muita magia para ver se as coisas melhoram, pois se formos esperar por políticas públicas, ai, ai… 

Sinto ser importante localizar vocês, pessoas que acompanham o DarkBlog, acerca de alguns pontos — em tempos de pessoas que se referem com pronomes masculinos a uma travesti que tem “ela” tatuado no rosto, me parece importante tratarmos algumas questões. 

Antes, gostaria de dizer para vocês quem eu sou, porque muitas pessoas aqui podem não me conhecer — o que não seria surpresa nenhuma e eu já explico a razão. Me chamo Bárbara Macedo, sou uma travesti mineira. Fiz graduação em artes plásticas e atuei durante alguns anos como artista, professora de artes e curadora, mas é na magia que me (re)encontro todos os dias. Sou bruxa natural e oraculista há quase nove anos e makumbeira há quase dois anos. Estive atuando dentro de organizações militantes dos direitos das pessoas travestis e trans de Belo Horizonte durante alguns bons anos da minha vida. 

LEIA TAMBÉM: DUAS BRUXAS CONTAM COMO A CULTURA PAGÃ FOI TRANSFORMADA DURANTE A PANDEMIA

Pois bem, agora que vocês sabem um pouquinho sobre mim, vamos pontuar aquelas questões que mencionei antes. Começo por aquilo que eu disse ali em cima, sobre a razão pela qual muitas pessoas podem não me conhecer: pela mesma razão que podem não conhecer outras pessoas trans que ocupam lugares dentro da espiritualidade, dentro da literatura, dentro das artes, dentro de qualquer meio que qualquer pessoa é capaz de exercer. Eu trabalho ativamente com atendimentos oraculares, trabalhos de magia e mentoria espiritual, mas o apagamento causado pela transfobia estrutural no Brasil faz com que eu não seja uma referência possível. Portanto, trago aqui uma provocação: quantas travestis são suas referências espirituais? As bruxas que são travestis, elas são suas referências de sagrado ou são aquelas que queimam em suas fogueiras do julgamento internetês? Dito isso, sigamos. 

Se estamos falando de visibilidade, é preciso que saibam o que estamos tentando tornar visível: identidades de gênero. Não se trata de visibilidade travesti e trans se houverem frases do tipo “toda forma de amar importa”. Isso porque identidade de gênero (quem eu sou) nada tem a ver com orientação sexual (quem eu amo/desejo). Quando falamos a respeito de pessoas trans e travestis, estamos falando sobre identidades sociais. Portanto, se digo para vocês que eu sou uma travesti mineira, além da minha identidade de gênero (travesti), a única outra coisa que vocês sabem sobre mim é o lugar onde eu nasci (Minas Gerais). Para quem eu dirijo meu afeto e desejo está oculto nessa frase, pois, novamente, minha orientação sexual em nada tem relação com minha identidade de gênero. 

E se estamos falando sobre tornar visível, também estamos falando em entender que a visibilidade somente não dá conta da manutenção de nossas vidas, porque além de tudo nós também temos contas para pagar. Portanto, contratem os serviços de pessoas trans e travestis, a visibilidade é um importante ponto de representatividade e auto-reconhecimento, mas enquanto essa não for uma forma válida de pagamento dos nossos aluguéis, precisamos que vocês paguem pelos nossos saberes e serviços. 

Vamos falar sobre quem somos nós, AS travestis? Sim, no feminino. Se é sobre tornar visível, que vocês possam nos enxergar com os dois olhos bem abertos. A primeira coisa que vocês precisam saber: travesti NÃO É um homem que se veste de mulher, esta é uma frase violenta. A identidade travesti é uma identidade de gênero LATINOAMERICANA, pois foi aqui (principalmente na América do Sul) que subvertemos aquela lógica transfóbica inicial que eu apontei ali no começo deste parágrafo. Durante os anos 1970 e 1980, nós, travestis, fomos consideradas como um apêndice da homossexualidade. Uma espécie de “outro nível de gay”, um nível transformado, marginalizado, um estágio pior da homossexualidade. Foi quando passamos a reivindicar nossa IDENTIDADE e também a nossa língua mátria: o bajubá (ou pajubá, ambas corretas). Quando vocês verem pessoas que não são trans ou — principalmente — travestis reivindicando o bajubá como uma língua LGBTQIA+, saibam que foi uma articulação NOSSA para sobreviver em meio a Operação Tarântula, feita durante a ditadura militar pelas polícias civil e militar de São Paulo, que tinha como objetivo caçar, prender e torturar travestis. Foi o bajubá que possibilitou uma codificação dos nossos diálogos e, consequentemente, a nossa proteção. 

Por mais que nossa identidade esteja em um espectro de não binaridade, afinal muitas de nós — inclusive eu — não nos identificamos nem como homens, nem como mulheres,mas como travestis, os pronomes de tratamento devem ser FEMININOS (a, ela, dela). Portanto, sempre se refira a uma de nós como A travesti. E desconstrua a visão acerca de sermos “homens vestidos de mulheres”, pois, além de transfóbica, esta é uma fala sexista. Sinto ser importante ressaltar também alguns dados que rondam nossa população. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (ANTRA), o Brasil segue como o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo, pelo 13° ano consecutivo. A nossa expectativa de vida é de 35 anos (como diz Keila Simpson: “nossa vingança é envelhecer”). Noventa por cento das travestis brasileiras se encontram hoje na prostituição. Há uma guerra abertamente declarada contra nós, uma postura bélica e cafona que acredita que “arminha” é solução para tudo. É preciso, também, que a gente naturalize outros dados. Queremos ver crescer os dados da escolaridade, da conquista de empregos, os dados sobre como estamos VIVENDO, não os dados de como estamos sobrevivendo. 

QUAL O LUGAR DAS TRAVESTIS E PESSOAS TRANS NA ESPIRITUALIDADE? 

Nos lugares de referência, obviamente. Por que haveria de ser diferente? Estamos fazendo e falando sobre isso ativamente. Dentro da bruxaria, eu cultuo o panteão grego há quase nove anos, sou filha de Afrodite e mais: sacerdotisa dela! O fato de eu ser uma travesti tira de mim todos os créditos para falar sobre o culto a ela? O nosso lugar na espiritualidade é em um lugar de protagonismo pois sempre estivemos presentes nesse caminho, ainda que o apagamento tenta te dizer que não. Sacerdotisas travestis sempre existiram. Com uma busca rápida na internet você consegue achar vários atravessamentos entre deuses e pessoas trans e travestis. Safo de Lesbos foi uma poetisa que tinha Afrodite como sua principal musa, ninguém dedicou tanta poesia a Afrodite quanto ela. Estudos atuais nos mostram indicativos que ela escrevia inspirada pela não binaridade de gênero. Houve um templo de Afrodite, em uma região perto do que hoje se conhece como Turquia, onde mulheres exerciam ofícios oraculares em nome da deusa (penso se tratar de Afrodite Aphtikis, epíteto oracular). Os homens que nasciam com dons oraculares nos arredores do templo, eram transformados em mulheres por Afrodite; em outros templos dela, alguns sacerdotes faziam algo como uma transição de gênero para servir a Afrodite e exercer os ofícios das sacerdotisas, inclusive no que tange ao que chamavam de prostituição sagrada, relacionando-se com homens de forma consagrada a Afrodite. 

O apagamento das identidades trans no sacerdócio, não só de Afrodite mas de qualquer divindade, de qualquer panteão, é uma lógica transfóbica que tem como base a interferência humana nos processos espirituais, já que as próprias divindades não encontravam (e não encontram) problemas nessa fluidez de gênero. Nós, sacerdotisas travestis, sempre existimos e vamos continuar existindo. Quanto mais tentam nos aprisionar, mais livres ficamos. Nascemos e renascemos das conchas sagradas, nadamos nuas nos oceanos espirituais, guerreamos portando uma afiada navalha e um impenetrável escudo que é feito da carne e do sangue daquelas que vieram antes de nós e abriram os caminhos. É por elas que seguimos.

Outra relação que quero propor aqui, enquanto makumbeira, é das travestis e das pombagiras. Não tem como negar os atravessamentos, uma vez que pombagira responde a TODAS as mulheres e identidades femininas, sem distinção. Comecemos pela própria questão identitária. Existem diferentes sugestões acerca da origem do nome “pombagira”. Alguns dizem se tratar de uma corruptela de “pambu njila”; outros dizem se tratar da entidade conhecida como “van-gira”; há ainda quem as associe a Bobo Djiro (que inclusive se trata de uma entidade que transitava de maneira fluida entre os gêneros). Ao final, entende-se que o nome pombagira é, por si só, brasileiro. Portanto, temos uma primeira semelhança: se pombagira, enquanto a entidade que conhecemos, se firmou aqui, nós, AS travestis também! Além dessa semelhança, sabemos que, em vida, muitas pombagiras foram prostitutas. Tanto que elas respondem ativamente aos campos de proteção dessas mulheres. Agora, vocês se lembram qual a porcentagem da população travesti e trans que se prostitui atualmente no Brasil? Pombagira é tida como “povo da rua” e a rua é o local que esperam que as travestis habitem, sempre à margem, sempre à noite. Qualquer semelhança NÃO é mera coincidência. 

Creio que poderia elencar, também, a proximidade linguística. Lembram do bajubá (ou pajubá) lá na Operação Tarântula? A maioria das palavras do bajubá são de origem de línguas do tronco banto, utilizadas em terreiros de umbanda e candomblé, mas com o significado muitas vezes alterado para mascarar sua utilização; Muitas histórias remetem à pombagira como entidade originada dos povos banto; muitas histórias remetem à pombagira como uma identidade criada a partir da mescla ou “corruptela” de outras, tal qual nós, travestis, muitas vezes tidas como infratoras de gênero, como uma “corruptela” de homem e mulher. Tal qual seria vista, atualmente, Bombo Djiro, que permeava os meandros de dois gêneros. Pombagiras e travestis possuem mais semelhanças que diferenças, pois o acolhimento e ápice da conexão com elas não se dá apenas através do útero, uma vez que ele não é exclusivo de mulheres. Mas, principalmente, a partir da correspondência das lutas de todas as mulheres e demais identidades femininas. Se pombagira revolucionou o feminino, nós, travestis, somos parte fundamental dessa revolução. 

Não sou a única a trazer  apontamentos a respeito dessas semelhanças, é a história. Vejam só: muita gente considera Maria Navalha como pombagira; outro tanto de gente, considera ela como malandra; mais uma porção de gente, considera ela como mestra. Fato é que, independente da linha que ela se apresente, “ela traz uma navalha que corta o mal e a injustiça”, como diz o ponto cantado. Tal qual Cintura-Fina, travesti que fez seu nome nas ruas de Belo Horizonte, cidade onde nasci e moro. Creio que se Cintura-Fina se tornasse entidade, seria Maria Navalha, com certeza. Foi entre as décadas de 1950 e 1980 que a travesti cearense Cintura-Fina viveu em Minas Gerais; primeiro, na capital Belo Horizonte, depois na cidade de Uberaba. Ela era constantemente perseguida pela polícia, além de lidar com inúmeros abusos e agressões. Frequentava a zona boêmia da cidade e, com toda sua malandragem, se defendia de tudo com sua inseparável navalha. Conta-se que ela, inclusive, dava aulas sobre como utilizar este instrumento para autodefesa. Assim, Cintura-Fina tornou-se temida tanto por bandidos quanto pela própria polícia. E passou a ser adorada por, vejam só, prostitutas e pessoas em vulnerabilidade social. Tão generosa quanto malandra, Cintura-Fina defendeu todes que precisaram dela. Mesmo que as defesas com sua navalha tenha lhe rendido onze inquéritos (“pombagira por que mataste o rapaz? a gente mata e vai presa, você mata e não vai”). Cintura-Fina é o retrato fiel da pombagira, da malandra. 

Sinto, afinal, que este texto talvez venha para cumprir uma função comemorativa nesta data: precisamos celebrar nossa história, nossa ancestralidade, nosso protagonismo espiritual. Se somos bruxas nas fogueiras contemporâneas, que nossa magia amaldiçoe a vida de cada um que insistir em nos matar. “Foi condenada pela lei da inquisição, para ser queimada viva sexta-feira da paixão, o padre rezava e o povo acompanhava, quanto mais o fogo ardia mais ela dava gargalhada.” E assim é.

Sobre Bárbara Macedo

Avatar photoBárbara Macedo é uma travesti bruxa e makumbeira. Trabalha como oraculista, magista e mentora espiritual. Tem como enorme desejo auxiliar as pessoas a romper com os olhares binários acerca de sua própria espiritualidade e, consequentemente, visão de mundo. Pesquisa as relações entre a população da qual faz parte (travesti) e espiritualidade, com enfoque na bruxaria e na umbanda. Conheçam seu trabalho no instagram @barbara_macedo37.

6 Comentários

  • rebeca

    29 de janeiro de 2022 às 14:54

    que história incrível, babi é de fato uma referência pra mim, tem sido e continuará sendo, e sei que também é pra muitas pessoas, histórias assim como de Cintura-Fina precisam ser contadas, precisam ser passados adiante. a visibilidade que esperamos para as pessoas trans e as travestis é que elas estejam sempre nesse lugar de reis e rainhas, como tem que ser !

  • Lorenzzo

    29 de janeiro de 2022 às 16:05

    Conheci barbara através de uma live e desde então, eu a acompanho por meio do perfil profissional e sou um dos muitos consulentes e admiradores dos trabalhos que ela oferece. Se faz necessário abrir caminhos para que pessoas trans e travestis tenham ainda mais voz para difundir informações, contar sobre suas experiências com a espiritualidade e acima de tudo, romper com a ideia de que travestis devem ficar somente à margem da sociedade. Que ocupem espaços imensos, de visibilidade e respeito, sempre!

  • Thaís

    29 de janeiro de 2022 às 16:26

    Babi, sua linda. Me emocionei do início ao fim. Sou tão feliz de ter vc na minha vida, e ainda mais de ser sua afilhada. Te amo, te amo, te amo

  • Ana Cláudia

    30 de janeiro de 2022 às 13:29

    Babi, deusa, é sempre memorável ouvir, ler, ver e sentir o que vc nos traz. Obrigada!

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