Por Anne Quiangala
Muito antes de eu ter lido As Quatro Estações, Stephen King era o típico cidadão do norte global: o valentão que intimidava garotas “estranhas”. Em algum momento, ele entendeu que poderia transformar isso numa discussão profunda com uma pitada especulativa de Carry: a Estranha. Essa conscientização, devido ao alcance da voz de King, foi um ponto de partida relevante para o que discutimos hoje.
Sem dúvida, as pesquisas e o trabalho de divulgação das acadêmicas do horror, Dra. Robin R. Means Coleman e Ashlee Blackwell, são essenciais para termos não apenas esta conversa como referencial adequado para ler produtos culturais de horror negro e de horror com negros. O problema é que esta perspectiva crítica só nos é apresentada depois de termos consumido a história do horror e os clássicos de uma perspectiva única. Coleman é autora do livro publicado pela DarkSide Books, Horror Noire: A Representação Negra no Cinema de Terror, uma obra única que encoraja o leitor a desmontar a imagem racializada do gênero, assim como as narrativas que compõem os comentários da cultura popular acerca de raça. O livro, inclusive, conta com prefácio exclusivo para a edição brasileira escrito por Ashlee Blackwell.
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Gosto de citar o prefácio de As Quatro Estações porque nele, King engajou quem achou que apenas leria histórias de terror em uma conversa séria sobre os horrores da humanidade — em especial o holocausto judeu — terem transformado a literatura de horror em algo muito mais leve que o real. Até aquele momento, eu nunca havia parado para pensar sobre a política que envolve o horror, mas pudera: a perspectiva do monstro e do medo socialmente marcados não tinha nem metade do alcance dos filmes, séries, jogos e quadrinhos de terror. O extinto selo Vertigo prometia falar sobre horrores da vida urbana, sobrenatural, temas adultos… mas, na maioria das vezes, os problemas sociais relacionados à raça mais descreviam que discutiam.
A questão é que, durante muito tempo, o ponto de vista de King e de autores com um local social semelhante ao dele representava tudo o que o mainstream queria que entendêssemos de horror, salvo os editores amantes acríticos de Lovecraft, claro — mas, na prática, eles convergem em alguns pontos (qualidade antes de representatividade?). Antes disso, no underground acadêmico, teóricas feministas expandiram bastante a perspectiva da ficção especulativa (Gótico, Horror, Terror, Ficção Científica) como comentário social, mas também esquecendo que, mesmo nos países desenvolvidos existe mundo para além “dos subúrbios”.
Perspectivas e existências estavam fora das dimensões consideradas até então, e não apenas pela ausência de corpos. As perguntas sempre excluíram desde “o que o homem do norte global teme?” (o sul global codificado na figura do monstro), até “o que a mulher do norte global, impedida de trabalhar, teme?” (as violências do lar). Neste meio tempo, a Segunda Guerra Mundial se tornou o ápice no imaginário dos horrores vividos pela humanidade. Daí o medo passa a atravessar o “humano”. Mas quem, afinal, é humano? E quem é coisa? Outra forma de agrupar é: vidas que importam e corpos que não pesam.
Arrisco dizer que a popularização de teorias pós-coloniais contribuiu para a desnaturalização da ideia de que “humano” é mero sinônimo de “homo sapiens”, bem como marcou “a inominável” branquitude e suas consequências de forma multidisciplinar. Isso revelou ao grande público as lacunas interpretativas no repertório convencional do horror, terror e gótico. Ao deslocar os sujeitos e os questionamentos, o horror precisa ser redimensionado. Já os monstros sociais, precisam ir além de “reconhecer privilégios”: precisam entender que representam monstros para alguém, e que senso de qualidade estética, o repertório de clássicos e o “gostar” também marcam localização social. Ninguém deve se sentir estável neste lugar, devemos sempre nos perguntar “o que vem depois?”, e agir da forma mais coerente, dialogando com outras perspectivas sobre tudo o que parece básico e natural, como o medo, o horror e o Outro.
Neste sentido, King abriu as portas para minha reflexão, teóricas como Joanna Russ ampliaram ainda mais meus questionamentos, porém, foi o trabalho de Ashlee Blackwell em seu blog Graveyard Shift Sisters que empurrou de uma vez por todas a produção de mulheres racializadas para o centro de análise de uma forma acessível, criteriosa e comprometida, inclusive, em divulgar a produção de acadêmicas do horror negro. Isso significa que precisamos ir além de consumir as obras, e buscar perspectivas críticas alinhadas com a história, objetivos e interesses do grupo social minorizado em questão.
Tenho certeza que o terror negro de Jordan Peele impactou a sua perspectiva sobre a moldura do gênero horror tanto quanto a minha. Corra trouxe ao senso comum o fato de que medo e monstro espelham locais de fala, e revelou algumas das questões que a maioria de nós que amamos o terror não estávamos nos fazendo até então.
E notemos que, mesmo em Hunters, que é uma série sobre a vingança de judeus contra seus algozes, Peele nos lembra de que horrores reais da humanidade não foram fabricados e nem se restringem ao século XX. A sutileza reside no fato de que ampliar os limites do horror não é sobre “quem sofreu mais”, mas sobre descolonização plena e reparação: a destruição da supremacia. Daí em diante é ouvir, consumir e equilibrar a balança e as molduras na ficção e fora dela!
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Anne Caroline Quiangala é idealizadora do Preta, Nerd & Burning Hell – um blog sobre #nerdiandade Preta e Feminista desde 2014. Tudo começou com o desejo de compartilhar o processo de pesquisa ao longo do mestrado em literatura, mas o projeto se tornou muito maior: a identificação do público trouxe mais perspectivas até estruturar uma equipe super diversa interessada em entregar conteúdo crítico e propor discussões profundas sobre cultura pop com embasamento teórico.
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