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A Queda da Casa de Usher: A relação da série da Netflix com a obra de Edgar Allan Poe

Semelhanças, diferenças e homenagens ao conto clássico

18/10/2023

Muitos artistas se sentem intimidados diante da tarefa de adaptar grandes clássicos da literatura para o cinema ou televisão. Não é para menos. A adaptação de qualquer obra envolve um esforço enorme e o enfrentamento de questões como diferentes tipos de linguagem, formatos distintos, contextos históricos próprios e até mesmo fãs apaixonados. Enquanto diversos diretores e roteiristas procuram desviar dessa difícil empreitada, Mike Flanagan há muito a vem abraçando com criatividade. 

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O cineasta nascido na cidade de Salem já havia nos presenteado com sua versão dos trabalhos de Shirley Jackson e Henry James, nas respectivas minisséries da Netflix A Maldição da Residência Hill (2018) e A Maldição da Mansão Bly (2020). Agora em A Queda da Casa de Usher, sua última colaboração com a plataforma de streaming, Flanagan assumiu a tarefa de trazer para as telas as obras de Edgar Allan Poe, tendo como fio condutor a clássica história título.

Honestamente, não consigo enxergar uma união tão perfeita quanto essa. Com exceção de quando o lendário Roger Corman dirigiu oito filmes baseados nas obras de Poe, sendo que quase todos protagonizados por outro gigante do terror: Vincent Price. Mas isso é assunto para outra hora. Sejamos sinceros, a união entre Flanagan e Poe é tematicamente perfeita. Embora separados por mais de um século de existência, ambos artistas exploram questões como a finitude humana, o sentimento da perda, o desespero da solidão e a melancólica pergunta do que vem depois da vida. Se do pó viemos e ao pó retornaremos, o que significa todo o resto? 

Nunca mais: O fim da família Usher

Antes de tudo, o mais importante é delimitarmos do que estamos falando. É preciso abrir o jogo. Então, não, A Queda da Casa de Usher não é uma adaptação da história homônima de Edgar Allan Poe. Esse não é, nem nunca foi, o objetivo de Mike Flanagan. 

a queda da casa de usher
Netflix/Reprodução

O que temos na minissérie é uma grande homenagem ao legado e às narrativas do autor. É uma nova e moderna visão do material de origem. Quem sabe, até podemos dizer que é um grande — mas delicado — mash-up das obras de Poe. Isso não deveria causar tanta estranheza aos espectadores, afinal Flanagan já fez isso antes. Tanto em Residência Hill quanto em Mansão Bly — e agora em Casa de Usher — o cineasta utiliza essas histórias originais para criar uma estrutura narrativa central e, assim, construir novos enredos que carregam sua própria visão criativa.  

A estrutura central aqui é o conto homônimo publicado em 1839, o qual inclusive você encontra em Edgar Allan Poe: Medo Clássico Vol. 1. Na história de Poe, acompanhamos um narrador anônimo que chega à casa de seu velho amigo, Roderick Usher, após receber uma carta pedindo por ajuda. A isolada casa em que Roderick vive junto de sua irmã gêmea Madeline, a qual se encontra extremamente doente, é uma personagem à parte, refletindo os temas de decadência dos laços familiares e a finitude que serão abordados ao longo da história. Não preciso mencionar que os irmãos são os últimos Usher vivos, não é mesmo?

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Pois bem, a série de Flanagan transporta a família Usher para os séculos XX e XXI, transformando-a em uma poderosa dinastia do ramo farmacêutico e dando atenção à epidemia de opioides. Roderick e Madeline ainda estão aqui, mas agora acompanhados por outros membros da família, os quais nunca são mencionados na história de Poe. Flanagan também opta por não deixar os personagens reclusos à claustrofóbica e decadente residência da família como acontece na história original. No entanto, a casa ainda é essencial para a narrativa da série, sendo o ambiente em que Roderick, atormentado por visões horríveis, conta ao promotor Auguste Dupin toda a história da ascensão e queda de sua família, linhagem e império. Esse é justamente o mistério e a grande novidade da minissérie. Afinal, o que Roderick Usher poderia ter feito para selar um destino tão cruel aos seus descendentes e a si próprio? 

a queda da casa de usher
Netflix/Reprodução

Enquanto Poe cobre apenas os últimos dias de Roderick, um homem recluso e aterrorizado, Flanagan passa por décadas do protagonista, expandindo consideravelmente o número de personagens da história. É aqui, por exemplo, que a minissérie empresta material de outras obras de Poe, criando uma relação simbiótica entre as narrativas. Tamerlane, Annabel Lee e Lenore são todas referências a poemas homônimos, Morella vem do conto publicado em 1835, Napoleon aparece em “The Spectacles” e Prospero é o personagem principal de “O Baile da Morte Vermelha”. Já o soturno Arthur Pym é o protagonista do único romance de Poe, A Narrativa de Arthur Gordon Pym (para uma referência a Missa da Meia-Noite, outra obra de Flanagan, fique de olho em uma conversa que o personagem tem ao final da série com Verna). Sabe aquele apelido que Lenore dá carinhosamente ao avô? Então, Grampus é o navio que leva Pym para suas aventuras

Já o narrador da história, Auguste Dupin, é o detetive que apareceu pela primeira vez em “Os Assassinatos na Rua Morgue”. Inclusive, os fãs atentos de Poe devem ter reparado que cada episódio é nomeado em homenagem a um de seus contos, como “O Gato Preto”, “O Coração Delator”, “O Poço e o Pêndulo”, “O Escaravelho de Ouro” e, é claro, “O Corvo”. Talvez essa seja a referência mais óbvia que Flanagan faz ao longo da minissérie, mas também é uma das mais geniais, já que cada episódio reinterpreta cada uma dessas histórias e as conecta na estrutura geral de Casa de Usher. Aqui descobrimos como os filhos de Roderick encontraram seu sangrento fim, ao mesmo tempo em que vibramos com as pistas nos vão sendo dadas desde o início: uma pesquisa com um dispositivo cardíaco, testes ilegais em chimpanzés, uma orgia luxuosa, um gato preto inofensivo e até mesmo uma caixa de assinatura de bem-estar nomeada de Escaravelho. 

Também vale prestar atenção aos diálogos, os quais frequentemente inserem trechos da poesia de Poe. Alguns são mais óbvios, como quando Roderick recita “Annabel Lee” em homenagem à esposa. Outras são mais sutis, como quando Camille diz “Toby, dammit” ao seu assistente, uma piscadinha a “Nunca Aposte a Cabeça com o Diabo”. Além disso, A Queda da Casa de Usher também faz referências à vida do próprio Poe. O pai biológico de Roderick e Madeline, William Longfellow, é uma menção ao poeta Henry Longfellow, o qual Poe acusou de plágio, enquanto Eliza Usher, a mãe dos gêmeos, é uma homenagem à Eliza Poe, mãe do autor. Inclusive, a “ressurreição” da personagem no primeiro episódio é um aceno ao clímax original do conto. 

a queda da casa de usher

Além do enredo cuidadosamente construído, a Casa de Usher tem outro ponto alto que precisa ser enaltecido: o elenco reunido para estrelar essa história. Todos brilham dando vida a personagens com personalidades próprias que nos fazem querer ver mais deles, apesar de sabermos qual vai ser o destino da grande maioria.

Sem dúvida o grande destaque vai para Carla Gugino, que interpreta a misteriosa Verna, uma presença preternatural que conduz o destino dos Usher. Aterrorizante e sedutora, Verna não é uma personagem propriamente dita de Poe, ela é a reencarnação de uma de mais icônicas criações: “O Corvo” (em inglês, Verna é um anagrama para raven, ou seja, Corvo). O poema clássico de Poe, publicado em 1845, aborda a temática da morte e do amor, em que seu protagonista é misteriosamente visitado por um corvo falante. Vale lembrar que frequentemente esses animais são representados como emissários da morte, algo que lembra muito o papel de Verna em Casa de Usher. Como a própria Gugino disse em uma entrevista: “ela é executora do destino ou a executora do carma”.

a queda da casa de usher
Netflix/Reprodução

Antes de encerrar esse texto, vale a pena mencionar o final da minissérie. Tanto na obra de Poe quanto na de Flanagan, os gêmeos entram juntos no mundo, assim como também saem dele ao mesmo tempo. Na Casa de Usher de Poe, Madeline é descrita como uma pessoa cataléptica, extremamente doente e propensa a transes e convulsões. O narrador mal interage com ela — diferentemente da minissérie, na qual a personagem é uma presença constante — e quando Roderick anuncia que sua irmã morreu, ele ajuda o amigo a sepultá-la. O grande clímax da história vem quando descobrimos que Madeline não morreu e decide se vingar do irmão, assustando-o até a morte e seguindo-o logo depois. 

Aqui Flanagan toma várias liberdades criativas, que fazem bastante sentido quando pensamos no impacto visual da cena. Roderick envenena a irmã e após acreditar que ela estava morta desmembra seus olhos, substituindo-os por uma pedra egípcia fúnebre. Assim como na história original, ela ressurge (tal qual um zumbi) para se vingar e levar o irmão para a morte. Tanto o narrador de Poe quanto Dupin conseguem escapar e assistem de camarote à casa da família cair aos pedaços, desmoronando no chão e simbolizando o fim da família Usher.  

E o fosso se fechou sobre os restos da casa de Usher

Não sei quanto a você, mas Mike Flanagan tem o poder de mexer comigo. Suas obras me deixam pensativa acerca da natureza da morte e das relações humanas. Posso dizer que ele frequentemente aluga um triplex na minha cabeça. Foi assim com Residência Hill, Mansão Bly, Missa da Meia-Noite e agora Casa de Usher. Flanagan consegue misturar o terror que tanto amamos com momentos de reflexão sobre família, finitude e legado. Sem esquecer é claro do suspense, das mortes sangrentas, do senso de humor macabro e de seus famosos monólogos. 

a queda da casa de usher

A meu ver, a união entre Flanagan e Poe foi magnífica. Como já falamos, não se trata de uma adaptação. Longe disso. Trata-se da criação de algo único. Algo novo. Algo híbrido. A Queda da Casa de Usher homenageia a genialidade de Edgar Allan Poe, ao mesmo tempo em que traz comentários atuais e novas visões de suas histórias clássicas. Tudo com a assinatura marcante de Flanagan. 

Não consigo não lembrar de Clive Barker, que em seu Livros de Sangue: Volume 2 trouxe uma mistura de releitura e continuação do icônico “Assassinatos da Rua Morgue” de Poe. Ou até mesmo de A Queda da Casa Morta de T. Kingfisher, que nos leva de volta à Casa de Usher em uma nova e misteriosa trama inspirada nessa história imortal. Essas obras, junto à minissérie de Flanagan, nos lembram de como a literatura é viva e pulsante. Sempre em movimento. Nunca completamente finalizada. 

a queda da casa morta

Com performances magnéticas, uma produção deslumbrante e sequências de horror de tirar o fôlego, A Queda da Casa de Usher consegue modernizar de forma brilhante o legado de Poe, seja com a farmacêutica Fortunato ou com a inteligência artificial que repete em looping “nunca mais”, ao mesmo tempo em que mantém elementos presentes nas obras do escritor: a atmosfera sombria e melancólica, a discussão sobre vida e morte, o além que volta para assombrar os vivos, as relações humanas e o medo do nosso próprio destino. 

Com todas as suas semelhanças, homenagens e diferenças, A Queda da Casa de Usher de Mike Flanagan com certeza vai agradar os fãs de um bom terror melancólico. É uma obra inesquecível. Uma carta de amor que vai agradar os fãs de Flanagan. Os fãs de Poe. E que provavelmente agradaria também o próprio autor que tanto nos ensinou sobre horror, morte e vida.

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Sobre Gabriela Müller Larocca

Avatar photoHistoriadora e pesquisadora de cinema de horror há mais de dez anos, enfatizando a representação feminina no audiovisual e o uso do horror como fonte histórica. Produtora de conteúdo e aspirante a garota final. Nunca nega um livro da Caveirinha nem um bom filme de horror. Fala bastante e reclama muito no RdMCast.

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2 Comentários

  • Andrea pavel

    21 de outubro de 2023 às 18:15

    Muito boa e coerente sua crítica. Qdo comecei a assistir achei q seria a adaptação do livro q tinha lido e foi uma grata surpresa perceber q Flanagan foi além…as citações de outros livros valem a série , bem como o trabalho de Greenwood.

  • Roberto Bruno

    22 de outubro de 2023 às 00:40

    Parabéns pelo seu texto Gabriela. Ótimo trabalho!

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