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Garota, Interrompida: Uma análise do filme 25 anos depois

A visão da saúde mental no fim dos anos 1990 e nos tempos atuais

04/11/2024

Às vezes a única maneira de estar lúcida é se tornar um pouco louca. Esse é o slogan que estampa os posters brasileiros de Garota, Interrompida, drama dirigido por James Mangold que neste ano enfim completa 25 primaveras.

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Ambientado em 1967, o longa acompanha a jornada de Susanna (Winona Ryder), uma privilegiada jovem do subúrbio da Nova Inglaterra que, após uma overdose causada por comprimidos e bebida alcoólica, é internada em Claymoore, um hospital psiquiátrico. No local, onde passa quase dois anos de sua vida, ela estabelece vínculos com outras pacientes que dão novos significados à sua jornada. 

Entre elas, estão Lisa (Angelina Jolie), uma jovem carismática diagnosticada com sociopatia; Georgina (Clea DuVall), uma adolescente mentirosa patológica; Janet (Angela Bettis), que luta contra a anorexia; Polly (Elisabeth Moss), uma vítima de queimadura que assume um comportamento infantil e, por fim, Daisy (Brittany Murphy), uma garota com Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) viciada em laxantes e frangos, que posteriormente revela sofrer abuso sexual por parte do pai. Junto a elas encontra-se Valerie (Whoopi Goldberg), a enfermeira-chefe da ala feminina do hospital. 

Para além de todas as temáticas levantadas e atuações memoráveis, Garota, Interrompida também se destaca por seu material de origem. O roteiro foi adaptado da obra homônima escrita pela verdadeira Susanna Kaysen, que na década de 1960 passou por uma internação em um hospital psiquiátrico. Publicado pela primeira vez em 1993, o relato autobiográfico ficcionalizado de Kaysen nos transporta para sua mente tumultuada e traz muitos dos temas que impulsionariam o filme de James Mangold, como saúde mental, identidade, autenticidade e os limites entre a sanidade e insanidade.

garota interrompida

Contudo, o impacto do livro ofuscou a recepção da adaptação cinematográfica. Embora, eu mesma seja de uma geração que adorou o filme Garota, Interrompida, na época de seu lançamento, o longa teve uma recepção mista, com muitas críticas apontando que o roteiro não conseguia capturar o poder do material de origem. Pasme: a própria Susanna Kaysen foi uma das detratoras e reclamou das adições feitas pelo diretor James Mangold. Entretanto, com o passar dos anos parece que o filme reconquistou seu mérito e entrou para o imaginário coletivo quando o assunto são representações cinematográficas sobre saúde mental. 

No entanto, muita coisa mudou de 1999 para cá. Tantos anos depois é impossível ignorar que somos pessoas diferentes e nossas concepções de loucura e saúde mental foram transformadas, assim como nossas subjetividades individuais e coletivas. Logo, não consigo deixar de me perguntar: qual o legado do filme 25 anos depois?

A coisa mais é louca é que você não está louca

Ao analisar Garota, Interrompida nos tempos atuais é impossível deixar de notar que um de seus grandes méritos é justamente a representação da saúde mental. Enquanto a grande maioria dos filmes frequentemente desemboca em estereótipos, menospreza diagnósticos ou retrata indivíduos com doenças mentais como perigosos e violentos (e cá entre nós, o terror faz bastante isso), o filme de 1999 se destaca por retratar suas personagens com mais nuances, mostrando que a realidade destas pacientes é extremamente complexa. Antes de serem pacientes de Claymoore, estas meninas são humanas e possuem seus próprios traumas, sonhos e jornadas. Elas são gente como a gente

garota interrompida

Isso possibilita uma abordagem que desmistifica a doença mental como um bicho de sete cabeças, evidenciando a mundanidade do tratamento e da vida cotidiana dessas pacientes. No fim, é impossível assistir a Garota, Interrompida e não simpatizar ou até mesmo se identificar com algumas das lutas vividas pelas personagens que aparecem nas telas. 

Entre temas que permanecem pertinentes até hoje, como abandono familiar, institucionalização forçada, incompreensão e isolamento, há um que desponta como o coração do filme: como nós mulheres somos tratadas quando o assunto é saúde mental e como recebemos menos controle sobre nossos próprios cuidados médicos. É significativo como nenhuma das garotas de Claymoore é instruída sobre seu diagnóstico e os medicamentos que lhe são administrados. Pior: elas não possuem nenhum tipo de escolha, não tendo autonomia nem voz acerca do tratamento. Nisso, o filme dialoga com discussões levantadas pelos movimentos feministas a partir dos anos 1960 acerca das relações entre gênero e saúde mental, especialmente como a régua de diagnóstico e tratamento é diferente para mulheres e homens.

garota interrompida

Para esse sistema, não importa muito qual é o histórico e os tormentos específicos dessas garotas. Para ele, todas são loucas. É aí que Garota, Interrompida se sobressai, mostrando a pluralidade dos indivíduos com doenças mentais e questionando o que é loucura e o que é normalidade e sanidade. Afinal, hoje nós sabemos bem que pensar e agir diferente da norma poderiam ser considerados e tratados como loucura nos anos 1960. 

Quem melhor exemplifica isso é justamente a personagem principal, Susanna. Ao longo do filme descobrimos que parte de seu diagnóstico advém de seu rompimento com as expectativas dos pais e de sua própria inconformidade social. Questionadora e melancólica, ela não consegue se inserir nas dinâmicas coletivas direcionadas para uma jovem de sua idade — ingressar em uma faculdade, arranjar um emprego e contrair matrimônio — e seu comportamento não condiz com o considerado “aceitável” para uma mulher na época. A falta de apoio e compreensão, assim como a pressão de ser jovem em uma geração bombardeada por expectativas e demandas, desencadeiam em um comportamento autodestrutivo que a leva para Claymoore. 

No entanto, é também por meio de Susanna que o filme escorrega. Ao abordar parte de seu comportamento como consequência da quebra de regras e expectativas sociais, o filme de certa forma diminui os sintomas e a necessidade de tratamento do transtorno de personalidade borderline, com o qual a personagem é diagnosticada. Enquanto Garota, Interrompida acerta ao não vilanizar ou explorar negativamente a condição, como Atração Fatal faz, por exemplo, o erro acontece na apresentação do TPB como uma doença mental “menos séria”, especialmente comparada com as doenças de outras pacientes.

garota interrompida

Ao se concentrar nos sintomas mais “suaves” vividos por Susanna e apresentar a cura como algo que pode ser escolhido, com a condição superada por vontade própria do paciente, o filme minimiza a importância do tratamento contínuo e diminui as dificuldades e enfrentamentos de quem realmente precisa viver a vida toda com o diagnóstico. Como bem sabemos, não se trata de simplesmente “escolher” ou utilizar a força da vontade para superar determinada condição. 

O monólogo final de Susanna e o desfecho da personagem de certa forma minimizam o trabalho árduo do tratamento e recuperação do TPB, os quais podem levar anos para serem alcançados e que, em alguns casos, simplesmente nunca acontecem de forma total. É impossível não enxergar a forma como esse encerramento se insere em uma narrativa prejudicial que nossa cultura continua perpetuando até hoje sobre saúde e doenças mentais. 

Algo parecido acontece com Lisa, personagem que rendeu a Angelina Jolie o Oscar® de Melhor Atriz Coadjuvante. Enquanto Garota, Interrompida acerta na representação menos estereotipada da sociopatia, o deslize acontece quando o filme se aproxima perigosamente de uma certa glamourização da sociopatia feminina. Por mais que o desfecho de Lisa esteja longe de ser um final feliz e a personagem tenha seus momentos de violência e sofrimento, ela ainda é apresentada de forma encantadora e divertida, com uma personalidade que pode ser encarada até como algo aspiracional para alguns espectadores. É claro que a atuação e a escalação de Angelina Jolie apenas contribuem para isso. 

garota interrompida lisa

Mas também preciso ser justa. Por mais que seja baseado no relato autobiográfico da verdadeira Susanna Kaysen, Garota, Interrompida, o filme, ainda é uma obra de ficção e não precisa estabelecer um contrato de 100% de autenticidade. Prova disso é como o longa esquiva da representação do sofrimento e dos tratamentos violentos da época, abrindo mão de ambientes escuros e pesados e optando por uma leveza que é transmitida por meio de cenários iluminados, diálogos elaborados e uma trilha sonora lírica. O objetivo não é perturbar o espectador, mas sim evocar sentimentos de empatia e identificação. Nesse sentido, o filme acerta, já que consegue levantar uma discussão séria e necessária sem abrir mão da leveza e de um olhar diferenciado, que se esquiva dos estereótipos e escancara a humanidade das personagens. As performances do elenco contribuem ainda mais para uma experiência divertida e emocionante, nos lembrando da importância da aceitação, autenticidade e compaixão. 

Embora esteja longe de ser perfeito, 25 anos depois de seu lançamento, Garota, Interrompida ainda possui seus méritos, merecendo um lugar de destaque no panteão de filmes sobre o assunto. Mais importante ainda, tal qual o livro homônimo, o longa de James Mangold é uma experiência tocante e delicada que não apenas levanta discussões pertinentes sobre saúde mental e gênero, como também evidencia a importância de olharmos para as lutas uns dos outros, combatendo a indiferença que se tornou tão recorrente em nossa sociedade.

LEIA TAMBÉM: Susanna Kaysen: 5 curiosidades sobre a autora de Garota, Interrompida

Sobre Gabriela Müller Larocca

Avatar photoHistoriadora e pesquisadora de cinema de horror há mais de dez anos, enfatizando a representação feminina no audiovisual e o uso do horror como fonte histórica. Produtora de conteúdo e aspirante a garota final. Nunca nega um livro da Caveirinha nem um bom filme de horror. Fala bastante e reclama muito no RdMCast.

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