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Cláudia Lemes: “Escrever sem coragem de se envolver não vale a pena”

Autora conta como foi escrever para Antologia Dark, coletânea que reúne escritores nacionais em uma homenagem à obra de Stephen King

06/04/2020

Por Cláudia Lemes

O ano era 1990. Eu tinha 10 anos, calejada como toda criança da década de 80. Não usávamos cinto de segurança, bebíamos Coca-Cola na mamadeira, as apresentadoras dos nossos programas de TV estavam sempre seminuas e faziam filmes pornô. E, claro, assistíamos filmes de horror como Sexta-Feira 13A Hora do Pesadelo e Halloween sem nenhum tipo de controle parental. Eu já tinha uma inclinação para o terror, afinal, quando todas as crianças liam O Pequeno Príncipe, eu era fã da coleção O Pequeno Vampiro, da Angela Sommer-Bodenburg.

Mas Cemitério Maldito foi diferente.

O filme me apavorou. Eu tive pesadelos com Pascow e Zelda por — literalmente — décadas. E eu assistia de novo, e de novo, e de novo. Eu fazia meu priminho Bruno ver o filme comigo e depois fingia ser a Zelda para apavorá-lo: “Racheeeell…”. Ele chorava e eu gargalhava, escondendo meu próprio pavor em algum lugar que mais tarde serviria como base para os meus livros.

Aos 14 anos, decidi ler o livro, depois da minha primeira e maravilhosa experiência literária com Stephen King – Carrie. A vibe de O Cemitério é diferente. Ela infecta o ambiente do leitor com a possibilidade da morte. Ela faz o livro pesar uma tonelada nas nossas mãos suadas. A história te puxa para baixo e te deprime. E você não consegue parar de ler.

Mesmo tendo lido quase trinta obras do King até o presente, eu ainda acho O Cemitério seu melhor livro, um livro que eu já li 5 vezes e que a cada leitura e principalmente depois de virar mãe, conseguiu me deixar abalada e com a psique destruída.

Então vamos fast-forward para os dias atuais. Aconteceu assim:

O Cesar Bravo, uma das pessoas mais íntegras do mercado editorial e grande amigo, me mandou um recado pelo Whats: “Dá uma olhada no seu e-mail”.

Eu pensei: “Eita, o Cesar tá vivo, que bom”.

Abri meu e-mail e vi o logo da DarkSide. Pensei “Mas que p****…?”

Li tudo. Aí li de novo.

BOOM!

Todo o meu histórico com a obra voltou. Eu tremia. Eu chamei o Cesar. Eu ousei ter esperanças:

“Alguém já escolheu O Cemitério?”

A resposta:

“É seu.”

LEIA TAMBÉM: ANTOLOGIA DARK: SAIBA A INSPIRAÇÃO DOS AUTORES POR TRÁS DE SEUS CONTOS

O conto saiu em poucas horas. Ele já estava dormente em algum lugar do meu subconsciente e quando eu comecei a escrever, ele fluiu dos meus dedos. Só que ele foi mexendo comigo, me deixando triste, me forçando a pensar naquilo que toda mãe e todo pai evita pensar, todos os dias: “E se…?” e eu nem consigo complementar a frase.

O problema de ter filhos é que o amor que você tem por eles é irracional, animalesco. Quando alguém toca no seu filho, mesmo que seja um afago na cabeça durante uma festa, você sente o toque em você, como uma vibração no seu perispírito, como algo potencialmente ameaçador. Você endireita a coluna, inspira o ar e aguça a visão e a audição enquanto mantém o sorriso forçado. Aos poucos, para não enlouquecer, aprende a se acalmar. Mas todos os dias da sua vida — sem exagero, todos — você vai ter aquele momento de pensar: “E se….?”

Stephen King teve esse momento, e decidiu, ao invés de enxotá-lo numa gaveta e fingir que nunca pensou naquilo e não queria pensar naquilo porque vai que “ah meu Deus vai que esse pensamento atraia não não vou pensar nisso porque eu morreria eu morreria se isso acontecesse…

Mas…

E se…?

E ele escreveu. Ele abraçou o pior medo de uma pessoa que tem um filho e colocou aquilo em pouco mais de 400 páginas. E ele pagou o preço. Ele ficou mal. O livro o afetou de uma maneira que tenho certeza que ele questionou se valeu a pena. Ele entrou em depressão.

É isso o que escritores fazem. Escritores sabem que coragem vai além de saltar de um avião com um paraquedas nas costas ou falar para alguém que está apaixonado. Coragem significa pegar aquele medo sujo, aquele medo em high-def, e topar entrar no carro dele numa noite escura. O medo levou King ao Cemitério.

Então eu tive um episódio em que quase aconteceu comigo e com meu caçula. Eu descrevi um incidente intenso relacionado à história do livro, mas achei melhor não falar sobre isso. O importante é que meu conto mexeu comigo, vazou para a minha vida e desencadeou uma depressão da qual só me livrei alguns meses atrás. Mas escrever sem coragem de se envolver não vale a pena.

Fica registrado aqui meu agradecimento ao Cesar Bravo e a DarkSide Books por me darem a oportunidade de imortalizar meu carinho pelo King e o respeito pela sua obra.

Aos leitores: apoiem este livro, e obrigada por me trazerem até aqui.

Cláudia Lemes
Natural de Santos/SP, Cláudia Lemes é tradutora, editora, escritora e está cursando uma pós-graduação em literatura contemporânea e também em técnico de auxiliar de necropsia. Iniciou sua carreira literária em 2014 com a publicação independente de Eu Vejo Kate, e no ano seguinte, o policial noir Um Martíni com o Diabo. Também publicou duas edições de Santa Adrenalina: Um Guia Para Quem Quer Escrever Thrillers, e agora faz parte da casa da Caveira, com seu conto em Antologia Dark. Conheça mais sobre o trabalho da escritora em www.claudialemes.com.br.

Sobre DarkSide

Avatar photoEles bem que tentaram nos vender um mundo perfeito. Não é nossa culpa se enxergamos as marcas de sangue embaixo do tapete. Na verdade, essa é a nossa maldição. Somos íntimos das sombras. Sentimos o frio que habita os corações humanos. Conhecemos o medo de perto, por vezes, até rimos dele. Dentro de nós, é sempre meia-noite. É inútil resistir. Faça um pacto com quem reconhece a beleza d’ O terror. O terror. Você é um dos nossos.

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