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C’est Arrivé Près de Chez Vous: A ultraviolência que arrancou elogios de Quentin Tarantino

Quando o true crime fica real demais

31/05/2024

Muito raramente um filme consegue permanecer relevante, moderno e contemporâneo depois de mais de três décadas de vida, mas no caso do filme de hoje, adaptado para o inglês como Man Bites Dog, na tradução direta para o português, Aconteceu Perto da Sua Casa, essa é a mais pura verdade.

C’est Arrivé Près de Chez Vous é um filme belga em língua francesa, de ficção documental e em preto e branco, dirigido por Rémy Belvaux, André Bonzel e Benoît Poelvoorde (que também atuam no filme). Essa pérola vermelha chegou ao mundo em 1992, quando o politicamente incorreto ainda tinha uma chance no cinema. Colocando de forma mais clara: os cinéfilos da época não davam importância alguma a essa classificação de correto/incorreto, naquele tempo o filme era bom ou ruim, e isso bastava. Basicamente, o que você precisa saber agora, é que esse filme acompanha uma equipe de cineastas filmando os crimes de um serial killer.

A primeira cena é o serial killer Ben (um dos diretores do filme, Benoît Poevoorde, o interpreta) atacando uma mulher, dentro de um trem em movimento. O realismo assusta, e nos coloca frente a frente com um assassinato premeditado, registrado e consentido pela equipe de filmagem. Na sequência, ainda acompanhamos o assassino cedendo um tutorial detalhado sobre como desovar cadáveres frescos em rios. Já nesse breve começo notamos um tom de humor evidente, que seria completamente cancelado nos dias de hoje, e tudo bem se você preferir interromper sua leitura por aqui: porque vai piorar bastante.

Agora estamos conhecendo a família do assassino documental: mãe, avós, uma família perfeitamente normal em um primeiro contato. De maneira muito, muito errada, nos afeiçoamos a Ben, nós não podemos evitar, mesmo que Ben siga com sua rotina de assassinatos na cena seguinte.

Seguimos com Ben em sua carreira de mortes, sedução e depravação. Bebemos junto com Ben, comemos mariscos e ouvimos suas histórias divertidas, de certa forma, nos consideramos seus cúmplices, o que é um grande trunfo a favor desse filme. Outro ponto é o carisma irresistível de Ben, que nos enfeitiça e desamarra laços morais que não deveriam se afrouxar.

E as amarras logo voltam ao aperto, porque Ben jamais deixa de ser um assassino desgraçado, e ele não é só isso, mas também é misógino, racista, preconceituoso, xenofóbico, estuprador, entre vários outros adjetivos disponíveis no catálogo dos criminosos. Essas partes realmente são indefensáveis, difíceis de assistir, mas esse filme requer o impensável. C’est Arrivé Près de Chez Vous requer que o espectador se permita pensar como Ben em sua sociedade adoecida e periférica de 1992, a se sentir na mente de um assassino em série, sociopata, psicopata em sua exata definição.

O que mais choca em algumas passagens do filme não são apenas os crimes de sangue, mas a proximidade com discursos de ódio que ainda hoje são proferidos e permitidos em algumas partes da sociedade. Infelizmente, Ben incorpora pessoas que ainda existem, vociferando pensamentos que ainda encontram abrigo na mente de muitas pessoas “de bem” (ou seria pessoas “de Ben” no caso dessa produção).

E se nada disso for complicado o bastante, Ben também é inteligente, charmoso e conta com a equipe de filmagem para abrir as portas mais difíceis. Em muitas partes do filme, as pessoas comuns se desarmam na presença da equipe de filmagem, imediatamente se sentindo seguras, e até mesmo, homenageadas pelo interesse repentino dos cineastas (Ben se passa por repórter e apresentador nessas ocasiões). Cada vez mais envolvido com a equipe de filmagem — e a equipe com ele —, Ben sugere que ajudará a custear o filme, pois acredita que a produção se tornará um épico do cinema documental. O ambiente oscila entre a cumplicidade e a desconfiança, os cineastas sabem que podem se tornar vítimas a qualquer momento, assim como Ben sabe que pode ser denunciado a qualquer deslize. A metalinguagem do filme é uma loucura, afinal, os cineastas interpretam a eles mesmos, e tendo isso em mente as atuações ganham outro brilho e significância.

Em sua loucura e imprevisibilidade, Ben segue matando sem um motivo claro. Às vezes mata para roubar, mata como forma de protesto social, mata simplesmente porque lhe pareceu uma boa ideia, ou para comprovar uma de suas teorias que não fazem o menor sentido. Tudo caminha a seu favor, mas então uma das vítimas, um homem também armado, consegue escapar. O sujeito abre fogo e atinge o operador de som da equipe antes que Ben consiga apanhá-lo. Com a equipe desfalcada, Ben leva todos para um happy hour, em um pub. As coisas já não estão como antes, agora existe animosidade, um tom de dúvida e desacato entre eles.

Desafiado, Ben concorda em atacar uma casa de pessoas ricas, mesmo que esse não seja seu modus operandi principal. O nível de violência volta a crescer exponencialmente, e se torna uma experiência desafiadora permanecer com Ben. A casa invadida é de uma família, mãe, pai e filho. O menino foge, e estamos desesperados para que consiga escapar. Seja forte e se prepare para essa sequência. E para as que virão depois.

A cada ataque, a permissividade da equipe de filmagem aumenta, e chega a um ponto onde eles passam a fazer parte dos crimes, seja como coadjuvantes, ou cúmplices, ou até mesmo como personagens principais. E eles não são os únicos. Na escalada de violência de Ben, ele consegue incentivar a própria fúria social a reencontrá-lo, e esse é o grande desfecho para esse assassino: o retorno.

O nível de violência visual, sexual e moral de C’est Arrivé Près de Chez Vous continua sendo perturbador, mesmo 32 anos após seu lançamento. Não continuaremos a narrar essa experiência para não corrermos o risco de traumatizar nossos leitores mais sensíveis, mas posso dizer que esse filme encontra paralelos em Quentin Tarantino (principalmente em filmes mais violentos como Natural Born Killers e Reservoir Dogs) e em muito do que Eli Roth fez e faz no horror. Com uma coragem rara e um senso de irresponsabilidade impressionante, esse filme coloca a ultraviolência em outra escala. Se você é um apreciador do gênero disposto a testar seus limites, esse filme é uma excelente pedida. Só não esqueça de tirar as crianças da sala. Esse é um filme perigoso. E de certa forma, brilhante.

Convencidos?

Vamos deixar o trailer para não pegarmos ninguém de surpresa.