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Como foi traduzir Eu Sou o Rei do Castelo

Minha relação com a obra de Susan Hill

06/09/2023

Quando recebi o convite da DarkSide® para traduzir Eu Sou o Rei do Castelo, uma pulguinha surgiu bem atrás da minha orelha. O título original, I’m the King of the Castle, não me era estranho. Na época eu estava trabalhando em outro projeto bastante exigente, então não sabia ao certo se daria conta de aceitar a proposta. Fui olhar o original, pra sentir o texto e ao mesmo tempo tirar a prova da minha desconfiança, e me deparei com uma história inesquecível que conheci há mais de 30 anos, não pela literatura, mas pelo cinema.

LEIA TAMBÉM: LANÇAMENTO: EU SOU O REI DO CASTELO, POR SUSAN HILL

O longa Eu Sou o Senhor do Castelo (1989), dirigido pelo cineasta francês Régis Wargnier, expõe a relação intensa e conflituosa entre Thomas e Charles, dois meninos de seus 11 anos — a mesma idade que eu tinha quando os conheci —, que me marcou muito e me acompanhou ao longo da vida. Cheguei a rever o filme algumas vezes, e para mim ele nunca perdeu a força nem o impacto.

eu sou o rei do castelo

A verdade é que eu jamais soube que o tal longa francês era uma adaptação livre do romance escrito em 1970 pela britânica Susan Hill. Quando descobri, foi inevitável: aceitei sem pestanejar o convite da DarkSide®, mergulhei de volta nos meus 11 anos e embarquei na tarefa de reviver e traduzir essa história tão marcante e, ao mesmo tempo, de contornos tão delicados.

Já nas primeiras páginas nós conhecemos o universo de Hooper, um garoto órfão de mãe, que se muda com o pai para o sombrio casarão do avô recém-falecido. Os dois passam a viver ali sozinhos, e o pai de Hooper, bastante incapaz de construir uma relação de afeto com o filho, resolve contratar uma governanta. A sra. Kingshaw chega à mansão acompanhada de seu filho, da mesma idade de Hooper, e este, antecipando uma grande ameaça territorial, declara guerra ao menino Charles e sai em defesa de sua casa e seu espaço, com as armas de que dispõe.

Uma das coisas mais bacanas do processo de tradução é o mergulho profundo que fazemos num livro. A bem da verdade, o tradutor talvez seja o leitor mais atento das obras que traduz, e arrisco dizer às vezes mais até que o autor. O tradutor lê o original, traduz, revisa seu próprio texto, e por vezes ainda precisa voltar para reler alguns pontos da própria revisão. Como a nossa tarefa é transportar a obra literária para outra língua de maneira íntegra, precisamos dissecar cada cena, cada fala, cada descrição e cada imagem, de modo a compreendê-las ao máximo e vertê-las todas com a maior fidelidade possível. Eu amo muito essa intimidade que tenho a chance de travar com cada obra que me chega às mãos, e mais ainda quando o livro é bom, bem escrito.

eu sou o rei do castelo

Com Eu Sou o Rei do Castelo essa intimidade ganhou um sabor especial, graças à relação que eu já tinha construído com a trama. Durante a tradução, revivi o vínculo ambíguo e sufocante que vai crescendo a cada página entre os protagonistas Hooper e Kingshaw, um misto de dependência mútua e desejo de aniquilação, e me embrenhei no jogo de opressor e oprimido em que os dois se lançam, aprendendo a se defender com mentiras, ameaças, agressões e manipulações — artifícios nada inocentes, diga-se de passagem.

Nesse embate, que na verdade já nasce desigual, o leitor vai percorrendo um emaranhado de sensações que todos conhecemos e sentimos em diversos momentos da vida, embora muitas vezes não gostemos de admitir: isolamento, abandono, dor, raiva, hostilidade, ódio, pavor, impotência. Tudo agigantado não só pelo casarão à beira da floresta — repleto de cômodos secretos, lembranças lúgubres e animais mortos —, mas pela óbvia fragilidade física e emocional de ambos os protagonistas, a exposição crua e horripilante da temática da rejeição infantil e o tom quase claustrofóbico que a trama vai ganhando ao se aproximar de um desfecho, com desdobramentos e consequências imprevisíveis. E inesquecíveis.

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É também muito bacana reparar como a autora conecta o leitor ao quarteto de personagens principais, mesclando sem qualquer marca no texto a narração com os pensamentos mais íntimos de cada um deles, e nos deixando frustrados e impotentes diante de tantos equívocos, falhas de comunicação e más interpretações. Pai, mãe, Hooper e Kingshaw são figuras autocentradas, amedrontadas e solitárias, ninguém enxerga ninguém, ninguém se sente visto de verdade, e o resultado disso, tanto na ficção quanto nos enredos da vida real, pode ser catastrófico.

Fica aqui o meu convite para que todos embarquem nessa história também. E agradeço demais à DarkSide® por me dar o prazer de revisitar uma trama que tanto me marcou. Viva a literatura, e viva a tradução!

LEIA TAMBÉM: EU SOU O REI DO CASTELO: 5 TEMAS DO LIVRO QUE FALAM COM TODOS NÓS

Sobre Mariana Serpa

Mariana SerpaCarioca e formada em Psicologia, concluiu em 2012 a Formação de Tradutores da PUC-Rio, e desde então traduz livros de ficção e não ficção para diversas casas editoriais. É uma das fundadoras da Pretexto – Tradução & Afins, onde há quatro anos ministra oficinas e mentorias de tradução literária.

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