Pense na seguinte descrição: um personagem negro, normalmente coadjuvante, que possui alguma aura mística, não muita instrução, boa intenção e que utiliza este “poder” para salvar um branco, em alguns casos envolvendo autossacrifício. É provável que alguns filmes — e bons filmes — tenham pipocado na sua cabeça. Só que este estereótipo se enquadra no conceito de Negro Mágico, que perpetua uma ideia de subserviência negra disfarçada de inclusão.
O termo foi cunhado por Spike Lee no início dos anos 2000, quando o cineasta compartilhou com estudantes de cinema seu desânimo em Hollywood continuar investindo nesta premissa. O conceito também é analisado no livro Horror Noire: A Representação Negra no Cinema de Terror, publicado pela DarkSide® Books.
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Sim, até nos filmes de terror esta ideia está presente, geralmente envolvendo o autossacrifício de um personagem negro. Já virou até piada em sátiras deste gênero que o personagem negro sempre morre antes. Bom, ele pode nem sempre ser o primeiro, mas geralmente sua morte serve a um propósito de poupar personagens brancos.
Nos anos 1980, quando o autossacrifício negro e eventuais aspectos místicos destes personagens – herdados de feiticeiros africanos – começaram a ganhar força, Hollywood ainda não sabia muito bem como encaixar atores nas histórias de uma forma “politicamente correta”. Em muitas produções da década personagens negros se viam pressionados a valorizar um sistema de lealdade e confiança unilateral — deles para os brancos, mas sem esperar a mesma consideração em retorno.
Nem precisa parar pra pensar muito pra perceber o quão cruel é esta dinâmica: o negro precisa ter uma natureza impecavelmente boa e se sacrificar pelo bem dos brancos para ter um valor talvez equivalente ao dos personagens principais (brancos, é claro). Isso estava (e ainda está) presente tanto em filmes de terror como em dramas e ficção científica e a fórmula tem rendido prêmios, incluindo o Oscar, até os dias de hoje.
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Apesar da definição de que estes personagens possuem algum poder sobrenatural, uma roupagem mais moderna abriu mão deste tipo de magia, mas sem perder o misticismo. Em vez de poderes inexplicáveis, muitos filmes empregam os personagens negros com um tipo de sabedoria superior, intuitiva, mas que continua servindo somente para que o personagem branco se torne alguém melhor.
Mas afinal, qual o problema neste tipo de representação? Afinal, em tese, tais filmes estão tentando ser mais inclusivos em um mercado predominantemente branco, não? Não necessariamente. Ao relegar atores e personagens negros a este papel de subserviência negra se perpetua a ideia de que eles existem para servir aos interesses dos brancos, sem desenvolverem as próprias histórias.
Toda a ideia de Negro Mágico foi, afinal, criada por brancos e, portanto, não reflete os interesses do que os negros têm a dizer em uma história. Em Horror Noire, a pesquisa da Dra. Robin R. Means Coleman é mais focada nos filmes de terror, mas pode ser aplicada em todos os gêneros quando ela diferencia um “filme negro” de um “filme com negros”. Ou seja, apenas inserir atores e personagens em uma narrativa orientada por e para brancos não faz tanto assim pela representatividade como cineastas e executivos de Hollywood gostam de acreditar.
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Cineastas como Spike Lee, Jordan Peele, Ava DuVernay, Barry Jenkins e Ryan Coogler dão alguns exemplos de como os negros têm muito mais a contribuir com o cinema do que como meros coadjuvantes e ferramentas na evolução dos brancos. De produções mais incisivas, como Infiltrado na Klan e Selma, até puro entretenimento como Corra! e Pantera Negra, eles mostram como a representatividade funciona de verdade.
Muitos dos nossos filmes preferidos acabaram utilizando a figura do Negro Mágico nas suas histórias. É muito provável que você nunca tenha prestado atenção nisso, afinal, racismo institucionalizado é justamente aquele que não enxergamos (pelo menos não tão rapidamente).
Confira abaixo alguns filmes que empregaram diretamente ou de forma velada a figura do Negro Mágico:
Neste filme a família branca Torrance se muda temporariamente para tomar conta do Hotel Overlook, que fica isolado durante o inverno. Antes de sair de férias, o cozinheiro negro do local, Dick (Scatman Crothers), orienta a família quanto à manutenção do hotel e revela ao pequeno Danny (Danny Lloyd) que possui poderes telepáticos secretos. No caso dele, o tal do “brilho” vem de sua avó, que lhe explicou se tratar de uma dádiva mágica. Por perceber que Danny também é um telepata, Dick se afeiçoa ao menino.
Mais adiante no filme, quando Danny se vê ameaçado por seu pai possuído, Jack (Jack Nicholson), ele pede ajuda a Dick telepaticamente. O personagem, então, despende um esforço gigantesco para ir ao resgate do menino: compra uma passagem de avião de última hora, aluga um carro, pega uma niveladora de neve emprestada e dirige em uma nevasca. Ainda assim, todo este esforço se mostra inútil para o plot principal: Dick nunca alcança Danny e é assassinado assim que chega ao hotel. Porém, Wendy (Shelley Duvall) e Danny utilizam a niveladora de Dick para fugir do hotel. Ou seja, além de ser o negro mágico, o cozinheiro-chefe do Overlook serve como oferenda sacrificial da família Torrance.
Neste filme ambientado na década de 1930 (pré-direitos civis nos Estados Unidos), o personagem negro John Coffey (Michael Clarke Duncan) é mostrado como um grandalhão mágico e burro que está no corredor da morte por um crime que não cometeu. Dentre os feitos de Coffey, estão a cura da hérnia de seu executor com um toque de mão, a remoção de um câncer da esposa do diretor da prisão e até mesmo a redução do envelhecimento de um ratinho que vive nas celas.
Percebam que, com exceção do rato, os poderes de John Coffey só servem para resolver os problemas dos brancos. Ele não os utiliza para salvar a si mesmo e, mesmo sendo condenado injustamente, acaba sendo executado pelas pessoas que ele ajudou — e que sabem de sua inocência.
Neste terror, uma mulher negra, Jezelle (Patricia Belcher), tem uma habilidade psíquica e sente que o perigo ronda dois jovens irmãos brancos, os protagonistas Patricia (Gina Philips) e Darry (Justin Long). Os irmãos estão de férias da faculdade, voltando pra casa dirigindo por uma estrada localizada numa área rural. Mesmo sem conhecê-los, ela sente o perigo, localiza os jovens e tenta ajudá-los a sobreviver a um canibal de outro mundo que devora humanos como parte de um ritual.
Mesmo tendo sido rejeitada e chamada de louca pelos dois quando ofereceu ajuda, ela permanece por perto para ajudá-los. Quando está de frente com o assassino, ela se oferece em autossacrifício para poupá-los. Mesmo tendo sobrevivido, ela permanece por perto como uma mãe substituta até que os pais dos irmãos apareçam.
Apesar de ter sido o vencedor do Oscar de Melhor Filme, Green Book se enquadra no conceito de negro mágico, mesmo que sem muita magia. Na história, Tony Lip (Viggo Mortensen) é um segurança bronco que consegue um emprego como motorista. Seu cliente é Don Shirley (Mahershala Ali), um sofisticado e culto pianista negro que está em turnê.
Ambientado na década de 1960, o filme mostra um país que ainda vivia a segregação, por isso, o tal do Green Book era um guia sobre como negros viajariam em segurança naquela época. Apesar de não possuir poderes mágicos, Don presenteia Tony com sua sabedoria, tornando um homem racista em seu verdadeiro protetor e até mesmo amigo. Outro ponto que empurra o personagem de Mahershala Ali para o estereótipo de Negro Mágico é seu tratamento como coadjuvante e não como ator principal ou coprotagonista.
Em mais um filme que se passa na prisão, Andy Dufrense (Tim Robbins) é um homem culto e bem de vida preso injustamente. Sua vida na pesada prisão de Shawshank fica um pouco mais fácil quando ele faz amizade com Red (Morgan Freeman), um homem negro que já está lá há muito mais tempo e, por meio da sabedoria e valores morais, dá apoio a Andy.
Originalmente não havia nada de Negro Mágico na história de Stephen King, até porque o personagem de Red era ruivo no conto. Porém, a escalação de Freeman para o papel e o ar de “um velho negro e sábio” acabou trazendo o filme para a caixinha do Negro Mágico.
Em Ghost, a personagem de Oda Mae Brown (Whoopi Goldberg) até subverte um pouco a essência do Negro Mágico. Começamos pelo fato de ela não ter uma índole tão boa assim, já que se trata de uma personagem bem trambiqueira e com passagem pela polícia.
No entanto, ela própria se surpreende ao descobrir seus poderes sobrenaturais de se comunicar com os mortos quando surge Sam (Patrick Swayze), um espírito que precisa desesperadamente salvar sua esposa Molly (Demi Moore) do mesmo complô que resultou na sua morte. A partir daí a missão principal de Oda Mae é ajudar o casal branco a resolver os seus problemas para que Molly seja salva e Sam possa seguir para o próximo plano espiritual.
Assim como À Espera de um Milagre, Lendas da Vida também se passa nos anos 1930. Na história, um fantasma negro chamado Vance (Will Smith) aparece para servir de carregador de tacos para Rannulph (Matt Damon), um veterano deprimido da Primeira Guerra Mundial e antiga estrela do golfe.
Vance restaura Rannulph emocionalmente, ajudando-o a ter sucesso no golfe e a arrumar uma namorada. Feito isso, o personagem desaparece pois já cumpriu a sua missão de ajudar um branco.
Nem Sex and the City escapou de explorar a figura do Negro Mágico. No filme, quando Carrie (Sarah Jessica Parker) passa por uma fase profunda de depressão por ter sido deixada no altar, ela só parece entrar de volta nos eixos de sua própria vida com a ajuda de sua nova assistente negra, Louise (Jennifer Hudson).
Louise dá jeito na vida inteira de Carrie: organiza o site, as correspondências, a caixa de e-mail e até a vida pessoal da protagonista. Este é o superpoder dela: uma eficiência acima do normal. Quando Carrie volta a se recuperar e a tomar as rédeas da própria vida, Louise sai de cena.
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