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De onde vem o temor japonês por fotos e retratos?

Conheça a lenda dos shinrei shashin

14/10/2024

Histórias de fantasmas carregam grande importância na cultura japonesa. Mas engana-se quem acha que essas narrativas se resumem unicamente ao cinema de horror. Na verdade, o Japão possui uma extensa tradição fantasmagórica e uma relação com o sobrenatural que remonta a séculos de folclore, lendas e outros contos sobrenaturais.

Um dos melhores exemplos disso é a literatura kaidan, popularizada no período Edo (1603 – 1868) e composta por narrativas que causam medo e estranheza. Frequentemente traduzidos como “histórias de fantasmas”, os kaidan vão muito além, incluindo seres sobrenaturais e fenômenos misteriosos — tradição que inspirou as histórias do mangá Contos de Horror da Mimi, de Junji Ito.

Essa relação com o mundo fantasmagórico deslizou para outras instâncias culturais, como os teatros kabuki, surgidos no século XVII, que ficaram conhecidos por encenar histórias sobre o sobrenatural, e também em xilogravuras e desenhos produzidos por artistas japoneses, os quais também datam do século XVII.

Tal proximidade com o sobrenatural, que perpassa praticamente toda a cultura japonesa, se estendeu pelos séculos e encontrou espaço em novos formatos midiáticos, como filmes, livros, videogames, animes e mangás. Mas não foi só isso. Ela também encontrou espaço na tecnologia, especificamente nas fotografias de fantasmas.

Shinrei Shashin: as fotografias de fantasmas

Você provavelmente já deve ter assistido a algum filme de horror japonês em que um dos personagens tira uma foto que ao ser revelada sai distorcida ou com alguma aparição estranha. Você também deve ter reparado que essas fotografias envolvem algum mistério, maldição ou fantasma. É exatamente o que acontece em Ringu – O Chamado (1998), nos quais as fotografias distorcidas revelam parte da maldição sinistra de Sadako.

Isso é uma representação do que os japoneses chamam de shinrei shashin, termo utilizado para descrever a aparição de fantasmas e espíritos em fotos instantâneas tiradas por pessoas comuns em situações cotidianas. O assunto é tão popular e difundido no Japão que rendeu programas de televisão exclusivos e até livros temáticos, os quais exibem e discutem estas fotografias, muitas das quais foram tiradas anos antes de sequer pensarmos na existência do Photoshop.

A noção de que câmeras e fotografias podem capturar o mundo espiritual não é algo exclusivo à cultura japonesa, aparecendo também no ocidente nas chamadas fotografias espíritas do século XIX e também em filmes como o tailandês Espíritos – A Morte Está ao Seu Lado (2004). No entanto, há algo nos shinrei shashin que decididamente se destaca das demais tradições e aparece enraizada especificamente no folclore e cultura japonesa.

Para começo de conversa, as shinrei shashin são fotografias pessoais, produzidas por pessoas comuns com câmeras instantâneas e em eventos do cotidiano, como reuniões de famílias, selfies em grupos e eventos escolares. Isso por si só já as difere das fotografias ocidentais do século XIX, por exemplo, que são marcadas pelo esforço de transformar o invisível em visível por meio da experimentação com novos efeitos, como imagens estereoscópicas e a dupla exposição — algo impossível de ser efeito em uma foto Polaroid.

As shinrei shashin acontecem então em contextos bastante comuns. Elas também se encaixam frequentemente em duas categorias: fotos que revelam algo que não estava no ambiente originalmente — como um rosto, uma mão, um vulto ou outro parte de corpo — e fotos em que as pessoas das fotos aparecem distorcidas, com seus membros alongados ou até mesmo faltando. Em ambos os casos, essas anomalias são reconhecidas apenas após a foto ser tirada, ou seja, o fantasma não pode ser visto a olho nu.

Existe assim todo um sistema de crenças compartilhadas em torno das shinrei shashin. Para começo de conversa, é de comum acordo que não é possível deliberadamente produzir esse tipo de fotografia, já que as aparições dependem inteiramente dos fantasmas e de suas motivações, que podem ser bondosas ou malignas. Há também um conjunto de locais mais propensos para isso acontecer, como cemitérios e outros lugares marcados por mortes trágicas, assim como é mais frequente que esse tipo de aparição aconteça em fotos com duas ou mais pessoas.

A aparição de um shinrei shashin pode gerar bastante apreensão nas pessoas. Alguns japoneses acreditam que as fotografias em que partes do corpo simplesmente desaparecem ou aparecem distorcidas podem ser sinais de problemas, prevendo uma lesão corporal no futuro. Outros afirmam que espíritos podem surgir por diferentes motivos, inclusive angústia, ciúme e raiva contra as pessoas da imagem. Em muitos casos, é recomendado que tais fotografias sejam levadas para santuários ou templos para serem purificadas antes de serem destruídas. Outra forma de descarte é enviar a imagem para programas de televisão e jornais que lidam especificamente com esse tipo de fenômeno.

As origens de shinrei shashin

A cultura japonesa é ricamente povoada por crenças em espíritos e fantasmas. Essa relação, que data de séculos e remonta ao folclore e à religião, de certa forma preparou o terreno para a aparição das fotografias conhecidas como shinrei shashin.

As bases xintoístas do país, que acreditam que espíritos habitam o mundo natural, e o folclore repleto de histórias sobre os Oni, demônios invisíveis, ajudam a explicar um pouco a persistência desses fenômenos em um Japão cada vez mais modernizado e tecnológico. Vale lembrar também de como a cultura do país é marcada pela presença de seres etéreos, como os yōkai, criaturas de habilidades sobrenaturais que adotam aparências diversas, os yūrei, análogos aos fantasmas ocidentais e os onryō, conhecidos como espíritos vingativos.

Ao longo dos séculos, esses seres sobrenaturais, assim como suas lendas e histórias, não desapareceram, mas continuaram habitando o imaginário japonês. Isso estabeleceu uma relação muito fluida com o mundo invisível dos espíritos e fantasmas, os quais esporadicamente fazem aparições nos centros urbanos e nas tecnologias do século XX e XXI.

Os shinrei shashin revelam assim uma coexistência entre um Japão modernizado e as tradições e crenças de séculos passados. Essas fotografias surgem dentro de dimensões culturais bastante específicas — o que explica a diferença entre os fantasmas japoneses e os ocidentais — e em contextos únicos do cotidiano, da sociedade e da crença do Japão.

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