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Diferenças e semelhanças nas adaptações do terror clássico

O eterno desafio de transpor histórias imortais a novas audiências

19/03/2024

Adaptar obras literárias clássicas é uma tarefa particularmente difícil. Enquanto algumas adaptações dão certo, outras entram para a história como grandes desastres. Mas sejamos sinceros, adaptar clássicos sempre vai ser algo desafiador. Qualquer adaptação, seja para o cinema, televisão ou teatro, envolve questões como diferentes tipos de linguagem, formatos e até mesmo contextos históricos. Afinal, um filme de Frankenstein produzido no século XXI, por exemplo, tem um contexto histórico bastante diferente do vivido por Mary Shelley em 1818 e isso com certeza transparece no produto final. 

LEIA TAMBÉM: CONHEÇA AS HISTÓRIAS VERDADEIRAS POR TRÁS DE CLÁSSICOS DO TERROR

Desde os seus primórdios, o cinema se mostrou interessado em adaptar livros de terror clássicos. Veja só, a Edison Studios lançou a primeira adaptação do romance de Mary Shelley em 1910! Muito antes do Drácula de Bela Lugosi e da Criatura de Boris Karloff sequer pensarem em aterrorizar as telonas. A predileção do cinema com clássicos do terror aumentou com o tempo. Drácula, Frankenstein, O Homem Invisível, Fantasma da Ópera… todos acabaram ganhando um filme para chamar de seu. 

É aqui que as coisas ficam um pouco confusas para o público. Enquanto existem adaptações que permanecem relativamente fiéis ao material de origem, outras, por inúmeras razões, utilizam da criatividade para expandir ou até mesmo criar novas histórias. A confusão aumenta quando pegamos casos em que essas mesmas adaptações se tornam tão famosas quanto seus originais. Basta lembrar da versão musical do romance de Gaston Leroux, O Fantasma da Ópera. Em 1986, o compositor Andrew Lloyd Webber utilizou a história como base para criar algo bem diferente do original, que encontrou sua adaptação mais fiel nas mãos de Lon Chaney no filme homônimo de 1925. 

o fantasma da ópera lon chaney

Isso mostra por que a comparação entre livro e filme é tão difícil. Afinal, estamos falando de formatos diferentes para contar uma determinada história, o que acarreta mudanças, adições e exclusões. Pensando nisso, a Caveira separou algumas adaptações de terror clássico e suas semelhanças e diferenças com as obras que as inspiraram. 

O Médico e o Monstro

Publicado em 1886 pelo escocês Robert Louis Stevenson, O Médico e O Monstro é considerado um dos maiores clássicos literários do terror, inspirando uma quantidade enorme de adaptações, do teatro ao cinema. Pasmem: a primeira versão cinematográfica do livro data de 1908.

Uma das versões mais bem-conceituadas da obra data de 1920, chamando atenção pela simples, mas eficaz cena de transformação. O filme homônimo utiliza bastante material do romance, mas também polvilha um pouco dos temas de outra obra clássica: O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde. O longa traz adições à história original, como novos personagens — incluindo uma noiva para Dr. Jekyll —, cenas que não acontecem no livro e sequências de eventos invertidas, além da suavização de características de Jekyll, que é construído como um jovem herói altruísta e caridoso, algo que Stevenson não incluiu em seu livro. Isso, inclusive, influencia o desfecho do filme, que, apesar de seguir as linhas do romance, mostra uma certa “redenção” inédita para o personagem. 

o médico e o monstro

Outra adaptação de O Médico e o Monstro data de 1931, estrelada por Fredric March, que levou um dos primeiros Oscars de Melhor Ator por sua performance. O filme não apenas trouxe umas das cenas de transformação mais memoráveis e próximas da descrição do livro, como também é considerado um dos mais fiéis por capturar seus temas psicológicos e morais.

Agora, quando o assunto é releitura, vale citar O Segredo de Mary Reilly, filme de 1996, estrelado por Julia Roberts e John Malkovich. Adaptação do premiado romance Mary Reilly de Valerie Martin, inspirado na obra de Stevenson, o longa inverte a perspectiva e a história é contada pelos olhos da governanta do Dr. Jekyll

Frankenstein

Desde a sua publicação, Frankenstein teve inúmeras adaptações e reimaginações para o cinema. Uma das mais famosas com certeza é a dirigida por James Whale em 1931 e protagonizada por Boris Karloff, que foi responsável por uma mudança na percepção geral da obra. O visual e a interpretação de Karloff foram enraizados na cultura pop e redefiniram como o público enxerga a criação de Mary Shelley. O filme de Whale, por exemplo, toma a estrutura básica do romance para construir uma narrativa com novas reviravoltas e uma divisão mais nítida entre Bem e Mal. 

frankenstein

Depois de inúmeras adaptações e sequências da história original, em 1994 uma produção cinematográfica prometeu uma versão mais fiel partindo de seu próprio título: Frankenstein de Mary Shelley. Dirigido e protagonizado por Kenneth Branagh e com Robert De Niro no papel de Criatura, o filme acerta em muitos aspectos quando o assunto é fidelidade ao livro. Para começo de conversa, é uma das poucas adaptações que mantém as cenas de expedição ao Polo Norte, assim como aprofunda outros temas do romance, como os perigos da ambição humana de brincar de Deus. Além disso, Frankenstein de Mary Shelley privilegia a ambiguidade moral construída pela autora, apresentando a Criatura por um prisma mais inocente e solidário e aprofundando sua relação com Victor Frankenstein.

No entanto, o filme tem desvios notáveis do livro, como a expansão e transformação de personagens, e uma carga de romance que não existe na obra original. Outro ponto importante de divergência é a motivação de Victor Frankenstein para seus experimentos, o que acaba refletindo no terceiro ato do filme, que é muito mais uma adaptação de A Noiva de Frankenstein (1935) do que do livro de Mary Shelley.

frankenstein prometeu moderno

Drácula

Drácula não é apenas o vampiro mais famoso da ficção. Ele também é o personagem literário mais adaptado de todos os tempos. Uma de suas primeiras aparições foi na década de 1920 em um filme húngaro que hoje encontra-se perdido. Posteriormente, o personagem criado por Bram Stoker foi adaptado de forma não oficial no clássico do expressionismo alemão, Nosferatu, até chegar na versão de 1931 estrelada por Bela Lugosi, cujo roteiro mistura parte do livro de Stoker com uma popular adaptação teatral. Em 1958, o vampiro ganhou outra reencarnação icônica com Christopher Lee em O Vampiro da Noite

Em 1992, de forma similar ao que aconteceu com Frankenstein de Mary Shelley dois anos depois, o público recebeu outra adaptação de Drácula, dessa vez nas mãos de Francis Ford Coppola, que, junto do roteirista James V. Hart, afirmou ser “a primeira a fazer justiça a todos os personagens de Stoker”. Bem, Drácula de Bram Stoker realmente colocou bastante coisa do livro em seu roteiro, mas ainda assim fez mudanças significativas. 

Talvez o mais correto seja apontar que Drácula de Bram Stoker é uma adaptação precisa, mas não fiel da obra literária. O contexto histórico e os cenários estão corretos, os personagens principais — Drácula, Van Helsing, Jonathan Harker e Mina — estão presentes e os grandes eventos acontecem na ordem que devem acontecer. Na medida do possível, o roteiro até respeita o formato epistolar do livro por meio de narrativas que assumem diários, cartas e registros fonográficos, além de representar elementos muitas vezes negligenciados em outras adaptações, como a mentalidade vitoriana, a viagem da Transilvânia até Londres e outros personagens coadjuvantes, como Lucy, Quincey e Arthur. 

drácula 1992

Contudo, as mudanças substanciais feitas no filme o afastam do tom e dos temas elaborados por Stoker, já que o roteiro insere uma história de origem do vampiro que nunca foi escrita por seu criador. Em Drácula de Bram Stoker, o Conde ganha uma conexão muito mais óbvia com Vlad, o Empalador, transformando-se em vampiro após perder a esposa e ser consumido pelo ódio, renunciando a Deus. Aqui entramos em outra mudança drástica feita pelo filme, que transformou Mina Harker na reencarnação da amada de Drácula. Os românticos com certeza vão ficar decepcionados, mas isso é apenas uma invenção do longa de 1992 (não, infelizmente o Conde nunca disse que viajou oceanos de tempo para encontrá-la). É aqui que o filme mais se afasta do material de origem, pois o livro de Stoker não é uma história de amor. Longe disso. 

Na obra, não há dúvida: Drácula é um monstro predatório que viaja até a Inglaterra para espalhar sua maldição e conquistar vítimas. O Conde é impiedoso, sem alma e não possui interesse romântico. Não há arrependimento melancólico nem saudade do passado. Já no filme, seu enredo é centrado na busca por Mina, de forma que o vilão é transformado em um herói trágico que apenas deseja se reunir com o amor perdido. Outras personagem que sofrem mudanças são Mina e Lucy. No romance de 1897, Mina não tem atração pelo vampiro, pelo contrário, enquanto Lucy não possui nada da carga sexual transbordante representada no filme.

dracula

Inclusive, vale pontuar que a inserção de um romance não foi invenção da adaptação de 1992. Outras versões, como um filme para televisão de 1974, já apresentavam Lucy como a noiva reencarnada do Conde. O longa Drácula de 1979, estrelado por Frank Langella também trouxe um romance entre Drácula e Lucy (que assume o papel de Mina). No entanto, esta versão é baseada na peça teatral de 1924 e em sua defesa nunca afirmou ser uma adaptação fiel do romance de Bram Stoker.

A Volta do Parafuso

Tornando-se uma das maiores histórias de fantasmas da literatura, é óbvio que não demorou até A Volta do Parafuso ser adaptada para os cinemas e televisão. Conhecida pelo final complexo e sombrio, a obra de Henry James é assunto de debate até hoje, o que facilitou a produção de diferentes versões e interpretações. 

a volta do parafuso

Quando o quesito é fidelidade não há nenhuma outra adaptação que supere Os Inocentes, do diretor Jack Clayton. Lançado em 1961, o filme estrelado por Deborah Kerr é, com razão, considerado a melhor versão cinematográfica do livro. Preservando os personagens, o período em que a história foi escrita e seguindo a narrativa quase que palavra por palavra, a adaptação presta atenção aos mínimos detalhes e aos temas pintados por James, além de manter o final devastador do clássico. 

Já em 2020, o mundo viu duas adaptações bem diferentes da obra. De um lado, temos a reimaginação de Mike Flanagan, A Maldição da Mansão Bly, que possui como base o livro de James, mas utiliza outras histórias de fantasmas do autor para ampliar o enredo e a participação dos personagens. De outro, o filme Os Órfãos tenta seguir o material original, mas se perde ao mudar a índole das crianças órfãs e criar um passado para a governanta. Essa história de fundo da personagem serve para alimentar o debate acerca do que é real ou não, mas acabou se afastando ainda mais do livro, entregando um final confuso que não tem relação com o desfecho ambíguo escrito por James no século XIX. 

os orfaos

As obras de Edgar Allan Poe

Desde que o cinema existe, cineastas têm se voltado para as obras de Edgar Allan Poe em busca de inspiração. Enquanto algumas adaptações tornaram-se clássicos por si só, outras tomaram rumos bem diferentes. Pelo fato de Poe ter privilegiado formatos mais curtos de escrita, é difícil encontrar qualquer adaptação que seja inteiramente fiel ao material de origem, já que muitas vezes é necessário preencher lacunas e ampliar enredos. Um dos exemplos mais recentes é A Queda da Casa de Usher, uma versão modernizada e expandida da história da família Usher, reimaginada em 2023 como uma influente dinastia farmacêutica.  

Uma solução comum encontrada por cineastas e roteiristas foi reunir as histórias de Poe em antologias. É o que Roger Corman fez em Muralhas do Pavor, filme de 1962 que condensa quatro histórias do escritor, “Morella”; “O Gato Preto”; “O Barril de Amontillado” e “A Verdade Sobre o Caso do Sr. Valdemar”. Inclusive, nenhum outro diretor conversou tanto com o escritor americano quanto Corman, responsável por levar para os cinemas oito de suas obras no chamado ciclo Corman-Poe. O cineasta é conhecido por algumas das mais famosas adaptações de Poe, como O Solar Maldito (1960), considerada a versão cinematográfica definitiva de A Queda da Casa de Usher, e A Orgia da Morte (1964), clássico inspirado no conto “A Máscara da Morte Vermelha”

o solar maldito

Pensando em reimaginações, O Poço e o Pêndulo (1961) utiliza poucos elementos do conto homônimo de 1842, além do dispositivo de tortura e o cenário espanhol do século XVI. Aqui o roteirista, Richard Matheson, autor de Hell House, incorpora alguns dos dispositivos literários favoritos de Poe, como personagens emparedados vivos, para ampliar a temática original. 

Já o poema mais famoso do escritor, “O Corvo”, serviu de inspiração para muitos filmes e séries de televisão, algo surpreendente quando lembramos que o original é relativamente curto e não fornece muita margem de adaptação. Isso faz com que a grande maioria das versões tenha pouca semelhança com o poema, evocando muito mais seu título do que qualquer outro elemento. Exemplo disso é o filme homônimo de 1963, estrelado por Vincent Price e marcado pelo tom cômico, o qual desvia imensamente da melancolia presente no poema original. O mesmo acontece com O Corvo de 1935, que apenas cita trechos do poema em um roteiro completamente original, e o filme de 2012 estrelado por John Cusack que se apropria do título, mas traz um suspense criminal com referências a outras obras de Poe e transforma o escritor em um personagem dentro da história. 

o corvo

Ainda no assunto de filmes que utilizam títulos de poemas de Poe, mas não tem nada a ver com a obra citada, temos O Castelo Assombrado (1963). O filme dirigido por Roger Corman retira seu título do poema homônimo publicado em 1839, mas na verdade seu roteiro é uma adaptação do livro O Caso de Charles Dexter Ward, assinado por H.P. Lovecraft. 

Um mundo de adaptações e reimaginações

Entre sucessos e fracassos, o cinema sempre vai se valer das adaptações de obras famosas. Afinal, tais histórias foram eternizadas por um motivo e continuam conquistando os corações de leitores e espectadores até os dias atuais. 

Quando o assunto envolve os clássicos do terror, existem versões para todos os públicos e gostos. Em alguns casos as adaptações cinematográficas são as responsáveis por apresentar tais obras para gerações mais novas. Em outros, entram no imaginário coletivo de tal maneira que até se confundem com seu material original. Basta lembrar como é praticamente impossível pensar em Frankenstein sem visualizar o monstro com parafusos no pescoço de Boris Karloff. 

Seja por meio de inspiração ou adaptações fiéis, para a nossa sorte, os cineastas continuamente retornam para essas histórias inesquecíveis. E cá entre nós, nesse eterno ciclo de adaptações, nós espectadores e leitores temos apenas a ganhar

LEIA TAMBÉM: DRÁCULA AO LONGO DAS DÉCADAS: UMA CRONOLOGIA IMORTAL

Sobre DarkSide

Avatar photoEles bem que tentaram nos vender um mundo perfeito. Não é nossa culpa se enxergamos as marcas de sangue embaixo do tapete. Na verdade, essa é a nossa maldição. Somos íntimos das sombras. Sentimos o frio que habita os corações humanos. Conhecemos o medo de perto, por vezes, até rimos dele. Dentro de nós, é sempre meia-noite. É inútil resistir. Faça um pacto com quem reconhece a beleza d’ O terror. O terror. Você é um dos nossos.

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