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EntrevistaGraphic Novel

Os bastidores, a história e o misticismo de Cartilagem

DarkBlog entrevista a equipe que produziu a HQ

19/12/2022

O preconceito e a superstição podem deixar profundas marcas na pele, como aprendemos em Cartilagem. A graphic novel, concebida originalmente na forma de conto, foi escrita a várias mãos e explora uma realidade intolerante de pequenas comunidades, mas que ainda é mimetizada em tempos atuais.

LEIA TAMBÉM: LANÇAMENTO: CARTILAGEM, POR ELOAR GUAZZELLI, MARKO MARTINZ, RENATO TURNES E VANDER COLOMBO

Com uma equipe de roteiristas com bagagem no audiovisual, os autores Renato Turnes, Marko Martinz e Vander Colombo se uniram à potente arte de Eloar Guazzelli para entregar uma história brutal em que a ignorância e o preconceito assumem a forma de verdadeiros monstros.

O DarkBlog conversou com todos eles em uma entrevista exclusiva sobre a história por trás da história, as inspirações, a relação com Florianópolis e os planos futuros para a HQ:

DarkBlog: Cartilagem é uma história escrita a várias mãos. De onde surgiu a ideia inicial e como ela foi tomando forma com essa colaboração tão plural?

Renato Turnes: No começo dos anos 2000 eu andava imerso na linguagem do terror, montando espetáculos de teatro adaptados da obra de Poe e Lovecraft, estudando o gênero e me aventurando na escrita de histórias, roteiros ou peças, que exploravam esse universo. Um dia, comprei um livro chamado Freaks, que contava biografias das atrações de circos e freakshows do século XIX e começo do XX e li sobre a história dos gêmeos Chang e Eng, os primeiros denominados siameses pela medicina, pois eram nascidos no Sião. O fato medonho de um ter morrido antes do outro, e as imagens que isso provocou na minha cabeça resultaram no conto “A Cartilagem”, base para o roteiro da HQ. O desenvolvimento desse argumento a seis mãos foi muito interessante, pois personagens e metáforas  sociais próprias do bom terror surgiram muito potentes e o estilo de cada autor convergiu na unidade estética que o roteiro tem.

D: A equipe de roteiristas têm uma vasta experiência no audiovisual. Qual a diferença de escrever para os quadrinhos? Foi uma adaptação tranquila?

Marko Martinz: Para mim, não foi muito diferente de escrever um roteiro audiovisual. Os quadrinhos sempre estiveram muito presentes na minha formação, então acho que foi meio no feeling. Eu lembro de ter sugerido algumas coisas para o Guazelli, de como eu imaginava uma ou outra cena, mas no geral, o trabalho de transmutação do roteiro literário para a narrativa gráfica coube ao Guazzelli. 

Vander Colombo: Olha, ao menos pra mim, não foi nem um pouco tranquilo não. O formato e o ritmo de uma graphic novel é bem diferente do cinema. O tempo que o leitor tem para apreciar cada quadro é bem maior, a quantidade de informação que é possível ter em cada requadro é incompatível com o que temos no audiovisual, então, queira ou não, são coisas que é preciso se ter em mente. Eu não tinha muito contato com quadrinhos, então acabei fazendo um intensivão, li Alan Moore, Gaiman, as coisas do Jodorowsky, Junji Ito, Lemire, D´Salete, um pouco de tudo, porque foram anos pra resgatar. Acabei, lógico, ficando um verdadeiro fã da nona arte com isso. Quero que seja o primeiro de muitos.

Renato Turnes: Eu procurei escrever a princípio como um roteiro de cinema, mas procurando essencializar a ação no limite. Limpando a imagem até restar uma fotografia imaginada que contivesse em si o núcleo da ideia e possibilitasse ferramentas para o desenhista criar com liberdade sua visão, acrescentando ainda outras camadas de sentido. Isso também se aplicou aos diálogos, enxutos para caber num quadrinho, no entanto coerentes com a época, o lugar e a cultura em que se passa a história.

cartilagem

D: Guazzelli, você já assinou obras completamente autorais e desenvolveu quadrinhos para clássicos literários. Qual a diferença entre adaptar algo que já existe e desenvolver algo do zero?

Eloar Guazzelli: Cada projeto tem seus desafios e peculiaridades. Desenvolver projetos a partir do zero implica numa grande liberdade, mas que comporta uma maior insegurança por não ter referências. Já uma adaptação encontra um território quase oposto ao exigir imaginação para acrescentar um toque pessoal, uma originalidade sem fugir da ideia de um outro autor.

D: A Ilha de Santa Catarina costuma ser associada, por quem é de fora, a uma atmosfera mais descontraída, de suas praias, festas e de férias de verão. Como Cartilagem cria um contraponto a essa visão?

Marko Martinz: Os turistas chegam e vão embora. Quem fica aqui conhece outra Ilha, a Ilha do outono/inverno, das brumas e do céu cinza. E existe todo um folclore bruxólico e um universo fantástico a ser explorado por aqui. O texto da Karen Rechia, que acompanha a HQ, lança luz sobre muitas destas questões. 

Vander Colombo: Particularmente eu vejo Florianópolis assim como boa parte do Sul como um todo, mesclando um estranho suco de uma ideia de progresso com um grosso lodo de provincianismo conservador, infelizmente. Não foi muito difícil elevar um pouco o grau para encontrar uma ideia quase medieval numa antiga vila onde hoje temos o cartão postal. Mas nas pequenas cidades da região, a vida dos nossos protagonistas ainda não é assim tão distante da vida de muitas pessoas vistas como diferentes, hoje. Falamos mais do hoje do que do ontem, no final das contas. 

Renato Turnes: A cultura da Ilha está baseada em arquétipos mágicos. O que o turista vê é a versão comercial de uma cultura mística obscura trazida pelos primeiros colonizadores, os desterrados. Quem vive aqui tem contato com o macabro desde muito cedo, em narrativas transmitidas por gerações, de bruxas, lobisomens, seres monstruosos, os mistérios do mar, as assombrações e visagens dos causos contados à luz do lampião pelas mulheres, madrugada adentro, nos engenhos de farinha do interior da Ilha. Para mim, que sou nativo, essa atmosfera sempre foi fascinante, única e envolvente. Cartilagem reinventa um momento primitivo da cidade, onde essa cultura do sobrenatural era a norma e a base das relações sociais.

Eloar Guazzelli: A Ilha tem uma história incrível… por sua condição peculiar de oferecer água e alimento sem grandes riscos e sobretudo por oferecer na baía sul, em frente ao continente, um porto natural perfeito. A Ilha foi um verdadeiro supermercado para as expedições rumo ao novo mundo. As origens do Brasil, com a ferrenha  disputa territorial entre as coroas portuguesa e espanhola, aconteceram ali. Além disso, piratas e aventureiros de toda sorte acrescentaram mais histórias, e por essas e outras a Ilha tem um fabuloso conjunto de fortalezas.

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D: Cartilagem se passa no Ribeirão da Ilha, uma região de Florianópolis que foge do circuito turístico mais badalado. Guazzelli, você também escolheu essa região para morar. Poderia nos contar o que ela tem de tão especial?

Eloar Guazzelli: Em 2007 tive a honra de desenhar a capital catarinense para o álbum “Florianópolis” da coleção Cidades Ilustradas da Casa21, e disso tudo saiu a convicção de que o Ribeirão da Ilha seria o lugar certo. Existem muitas “Ilhas”, mas neste caso é um lugar mais intimista, tranquilo mas non troppo, porque ali existe um polo gastronômico ancorado na maior província de ostreicultura do país. Quando estou sem grana, minha opção mais barata, haha.

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D: A obra é ambientada em uma vila do século XIX, com foco no preconceito e na superstição. De que maneira os temas da graphic novel conversam com os problemas ainda enfrentados em pleno século XXI?

Eloar Guazzelli Em um século aconteceram gigantescas transformações sociais que também ocorreram na região onde a história é ambientada, sem contar o caso particular que envolve uma trágica circunstância física que hoje seria de fácil resolução. Mas sob o manto de todos esses avanços ocorridos, a questão fundamental da narrativa, o preconceito e a rejeição daqueles que são diferentes, o abuso dos mais frágeis e a hipocrisia são infelizmente palco de grandes questões ainda hoje. Felizmente talvez isso se deva mais a uma reação violenta ao avanço inexorável de uma humanidade mais plena de direitos do que a uma efetiva capacidade de retornar a um velho regime de vida.

Marko Martinz: Eu não gostaria de datar essa resposta, mas é só olharmos com atenção o que tem acontecido no nosso país nos últimos tempos, que fica muito claro que os temas de Cartilagem estão mais atuais que nunca. A sociedade não se envergonha em se assumir preconceituosa, arrogante e violenta. É preciso contra-atacar, estar alerta com os ovos de serpente chocando no silêncio. 

D: Que sensações vocês buscam provocar no leitor de Cartilagem?

Renato Turnes: Idealmente, uma sensação física. Eu amo essa ideia de que o horror é o único gênero que tem no nome a sensação que deseja provocar. É sobre o corpo. É a sensação que o animal sente ao ser encurralado: luta ou fuga. O frio na espinha, um arrepio, o coração batendo acelerado. Há uma função catártica nisso.Toda análise intelectual está em camadas subjacentes à camada principal: a construção ficcional do medo. 

Vander Colombo: A ideia é ser uma história sombria, mas que ao mesmo tempo traga alguma reflexão em seu subtexto, mas isso fica a cargo de cada leitor. Acima de tudo, a gente quer que todo mundo se divirta lendo e consiga se envolver com esses personagens.

Marko Martinz: A história é angustiante. Acho que o trabalho magistral realizado pelo Guazzelli, com muito contraste, faz da Cartilagem uma graphic novel dura, dolorida. É pesado, do início ao fim. 

Eloar Guazzelli: Foi um trabalho difícil tirar a ambientação de seu lugar de um ambiente natural maravilhoso, como de fato a Ilha de Santa Catarina é, para através de um tratamento de luz e sombra torná-lo sombrio, fazer da mata atlântica um ambiente inóspito, realçar a solidão das personagens através da escala grandiosa de paredões de pedra e montanhas a beira mar. E, sobretudo, usar a própria imensidão e carga misteriosa do oceano para realçar o drama das personagens. Ajudou muito a conhecer muito bem os tipos humanos e as construções locais, para explorar o ambiente além dos clichês naturais em um ambiente turístico internacional.

D: Existe algum plano de levar a história da HQ para outras mídias e formatos?

Marko Martinz: Sim! A ideia inicial era um longa, depois uma série… acabou virando uma graphic novel. Talvez a publicação ajude a alavancar o projeto de levarmos a história para o cinema.

Vander Colombo: Ah, a ideia sempre é. Espero muito ver o Marko dirigindo essa história na telona e na telinha. O futuro dirá.

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Sobre DarkSide

Avatar photoEles bem que tentaram nos vender um mundo perfeito. Não é nossa culpa se enxergamos as marcas de sangue embaixo do tapete. Na verdade, essa é a nossa maldição. Somos íntimos das sombras. Sentimos o frio que habita os corações humanos. Conhecemos o medo de perto, por vezes, até rimos dele. Dentro de nós, é sempre meia-noite. É inútil resistir. Faça um pacto com quem reconhece a beleza d’ O terror. O terror. Você é um dos nossos.

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