Dark

BLOG

O UNIVERSO DARK DE FÃ PARA FÃ


ArtigoSociedade Secreta

Pã e a “animalização” do ser humano

Qual a relação do deus com comportamentos considerados não civilizados?

12/03/2024

A divisão entre natureza e civilização é algo extremamente complexo. Longe de ser histórica, a separação diz muito sobre nossa sociedade e códigos comportamentais. Não é surpresa então que essa dicotomia entre um mundo natural e desconhecido e outro racional e científico tenha sido o motor narrativo para tantas obras literárias. 

LEIA TAMBÉM: QUEM É O DEUS PÃ NA MITOLOGIA GREGA?

Dentro do horror, por exemplo, o tema é recorrentemente utilizado por autores do horror cósmico. Tais narrativas mostram a insignificância humana diante do desconhecido e de seres grandiosos, questionando temas como a existência humana e os limites da compreensão. Um grande representante disso é justamente o clássico O Grande Deus Pã do escritor galês Arthur Machen.

Considerado um dos precursores do horror cósmico, O Grande Deus Pã foi publicado em 1894 e influenciou escritores como H. P. Lovecraft e Neil Gaiman. A história, que se desenrola a partir de experimentos científicos e rituais capazes de despir os véus entre o mundo real e o sobrenatural, começa quando um cientista realiza uma estranha experiência, chamada de “ver o grande Deus Pã”, para que sua paciente vivencie o plano espiritual.

o grande deus pã

Mas essa não é de longe a única referência ao deus grego na obra. Arthur Machen não poderia ter escolhido uma divindade melhor para ser o fio condutor dos temas filosóficos abordados em seu livro. Afinal, Pã é associado a tudo que é silvestre, sendo conhecido pela luxúria e aparência híbrida. Não há melhor representante para esta dicotomia entre natureza e civilização do que ele, que personifica também a animalização do ser humano quando este ousa transpor essas fronteiras. 

Pã e a panolepsia

Para começo de conversa, Pã é muito anterior ao livro de Arthur Machen.  Embora seja uma deidade do panteão grego, acredita-se que seja ainda mais antigo, com origens que remontam a 500 A.C em Arcádia, região central do Peloponeso. Considerando esta origem, a associação de Pã como a divindade dos pastores, rebanhos, bosques e florestas faz bastante sentido, já que Arcádia era um distrito habitado por povos da montanha.

Vale mencionar que Pã não era visto como maligno, estando acima da dicotomia entre bem e mal. Conhecido por sua liberdade, apetite sexual e travessuras, o deus era frequentemente representado como protetor da natureza. Como também era comum em outras deidades gregas, às vezes se mostrava vingativo e hostil contra qualquer ordem instituída, deliciando-se em assustar pessoas que cruzavam as florestas à noite. Mas então, como explicamos a associação entre Pã e a animalização humana?

o grande deus pã

A resposta está na teolepsia, fenômeno muito comum na vida dos gregos antigos, que acreditavam que os deuses poderiam intervir, tanto de forma positiva quanto negativa, em suas vidas. A presença constante das divindades no plano terreno era frequentemente expressada por meio de possessões dos fiéis. A teolepsia não era exclusiva a nenhum deus, mas geralmente era atribuída ou a deuses muitos poderosos, como Apolo e Poseidon, ou a deuses limítrofes, como o próprio Pã, visto como uma ponte entre a separação do humano com o animal. Nesse caso, tinha-se o que era chamado de panolepsia

Segundo os gregos, a panolepsia acontecia quando o indivíduo era possuído em parte por Pã, desencadeando acessos repentinos e inexplicáveis de loucura, violência e raiva, além de atos “selvagens”. Quando isso acontecia, o ser humano perdia o contato consigo mesmo, sendo dirigido pela divindade que poderia agir tanto com objetivos maléficos quanto benéficos. No geral, a teolepsia e panolepsia ajudavam a explicar comportamentos que saiam da norma e do campo conhecido na época, como os de teor sexual e psiquiátrico.

LEIA TAMBÉM: A INFLUÊNCIA DE PÃ NA CULTURA POP

As possessões de Pã em específico eram muito conectadas a comportamentos “reprováveis” e de cunho sexual. Primeiro, vale lembrar que Pã era associado a uma sexualidade desenfreada, sendo constantes as narrativas em que perseguia ninfas pelos bosques e montanhas. Em segundo, sua própria existência era perturbadora, marcada pela união de conceitos contrários, como humano e animal, paz e ferocidade, sensibilidade e obscenidade, criatividade e destruição, civilização e barbárie. 

pã e ninfas

Logo, além de fornecer uma explicação para eventos físicos e psíquicos, a panolepsia também entrava nos domínios do simbólico, especificamente na divisão entre o mundo natural/divino e o terreno/humano. Quando Pã possuía um ser humano, ele deixava ainda mais incerta essa linha divisória, deixando o possuído em um estado tão primitivo e irracional que nem sequer se reconhecia como humano, deixando para trás os conceitos de civilização e entrando em um lugar de confusão e liberdade.

Não é de estranhar que a “animalização” causada por Pã tenha se estendido para além do mundo grego, encontrado ecos e metáforas nas sociedades modernas e até mesmo no gênero de terror por meio dos monstros. Afinal, a dicotomia entre humano e animal continua frequentemente representando e reforçando normas civilizatórias criadas pelos seres humanos. O impacto posterior de Pã foi tão grande, que sua morte, descrita por Plutarco, foi utilizada por pensadores cristãos para simbolizar o fim das antigas religiões pagãs e a mudança para uma nova ordem social, o cristianismo. 

Animalização e monstruosidade

Atualmente é comum encontrarmos enredos, imagens e discursos que mostram pessoas destituídas de sua humanidade por praticarem comportamentos tidos como condenáveis por parte da sociedade. Esse processo de “animalização” reforça a mesma separação conectada à Pã. Em nome de uma civilização construída cria-se uma divisão entre os seres humanos, sapientes e controlados, e os animais, encarados como bestiais e pertencentes ao mundo dos instintos. Essa separação retira do plano humano o espaço para comportamentos tidos como irracionais, fomentando o que chamamos de processo civilizador, guiado por códigos morais e éticos. 

o grande deus pã

Não é de se estranhar que no horror, por exemplo, a animalização se cruza frequentemente com a monstruosidade, em especial a feminina. Monstros são tradicionalmente vistos como destituídos de civilidade e humanidade, perturbando uma suposta ordem natural e habitando regiões limítrofes entre o humano e inumano, morto e vivo, bestial e civilizado. No cinema de horror, personagens femininas são recorrentemente associadas ao mundo animal e da natureza, reforçando separações históricas entre o mundo natural/feminino e o mundo masculino, regido por códigos e leis de comportamento, civilização e normalidade. 

É claro que não são apenas as personagens femininas que podem ser animalizadas e transformadas em monstros por transgredirem alguma norma social. O monstro é tradicionalmente o representante do mundo e comportamento anormal na narrativa, podendo ser representado de diferentes formas desde que transgrida normas e seja uma ameaça à ordem. Nesse sentido, é comum que personagens que possuam uma sexualidade exacerbada, crueldade demasiada ou qualquer outro apetite desgovernado sejam animalizados e destituídos de qualquer humanidade, personificando o Mal. Cria-se assim uma ideia de Outro, reforçando o que é e o que não é aceitável, o que é humano e o que não é.

Pensando especificamente no caso de O Grande Deus Pã há outro ponto importante. O livro foi escrito durante a Era Vitoriana, dialogando com os códigos morais e os medos da sociedade daquela época. Foi também nesse período que se popularizou a teoria da degeneração, que tentava estabelecer uma explicação biológica para problemas sociais, discutindo desordens físicas, mentais, histeria e criminalidade. 

o grande deus pã

Em O Grande Deus Pã, Arthur Machen dialoga com essas questões por meio da animalização de uma de suas personagens, que é construída como agente do medo e caos justamente por desafiar a moral da sociedade vitoriana. Machen também opera um retorno a Pã, que como fio condutor da narrativa representa o estágio natural, animalesco e primitivo da existência, aquele que há muito foi deixado para trás em nome de um suposto progresso civilizatório. Nesse sentido, o conteúdo sexual do livro também é explicado, já que sexo e natureza operam no mesmo campo pagão dos instintos e não no campo da razão e ordem. 

O Grande Deus Pã inspira terror por meio da associação de Pã ao mundo desconhecido, e ancestral, algo tão grandioso que é incompreensível à razão humana, capaz inclusive de enlouquecer qualquer um que tenha contato com ele. Agora deu para entender por que H.P. Lovecraft era um grande fã da obra, não é mesmo? 

Por meio de sua abordagem filosófica, Arthur Machen tocou em temas como a busca pelo conhecimento proibido, a insignificância humana e os limites entre o bem e o mal. Enxergando a complexidade da figura de Pã, o autor utilizou a divindade para guiar seu fascinante labirinto de terror, explorando os lados mais perturbadores da mente e do desejo humano, assim como dilemas morais e noções convencionais de civilização.

Lançamento da DarkSide® Books, O Grande Deus Pã é o mais novo integrante da marca Sociedade Secreta e já está disponível na Loja Oficial Dark. Você tem coragem de cruzar as fronteiras entre os mundos? 

LEIA TAMBÉM: MONSTRUOSIDADE FEMININA NO TERROR

Sobre DarkSide

Avatar photoEles bem que tentaram nos vender um mundo perfeito. Não é nossa culpa se enxergamos as marcas de sangue embaixo do tapete. Na verdade, essa é a nossa maldição. Somos íntimos das sombras. Sentimos o frio que habita os corações humanos. Conhecemos o medo de perto, por vezes, até rimos dele. Dentro de nós, é sempre meia-noite. É inútil resistir. Faça um pacto com quem reconhece a beleza d’ O terror. O terror. Você é um dos nossos.

Website

0 Comentários

Deixe o seu comentário!


Obrigado por comentar! Seu comentário aguarda moderação.

Indicados para você!

O Grande Deus Pã + Brindes Exclusivos
R$ 79,90
5% de Descontono boleto
COMPRAR
H.P. Lovecraft - Miskatonic Edition
R$ 79,90
5% de Descontono boleto
COMPRAR
  • Árvore de Ossos

    Sobreviventes
ÚLTIMAS NOTÍCIAS
FilmesHalloweenNovidades

A Substância: Temos a fantasia de última hora perfeita para o Halloween

ATENÇÃO: ESSE TEXTO CONTÉM SPOILERS DE A SUBSTÂNCIA Acontece com as melhores...

Por DarkSide
BooktourEventosNovidades

Nagabe virá ao Brasil em novembro

Ao longo de onze volumes, Nagabe encantou os DarkSiders com a jornada emocionante de...

Por DarkSide
GamesNovidades

The Rocky Horror Show ganhou versão em videogame

Um Time Warp em 8 bit? Sim, queremos. O maravilhoso musical The Rocky Horror Show —...

Por DarkSide
Crime SceneNovidades

Promotor diz que Irmãos Menendez devem receber liberdade condicional

Os irmãos condenados pelo assassinato de seus próprios pais em um caso que abalou os...

Por DarkSide
DarkloveLivrosNovidades

O Jardim Onírico de Clarice Lispector vence o Prêmio FNLIJ 50 anos

A Caveira está em festa: O Jardim Onírico de Clarice Lispector, de Daniela Tarazona e...

Por DarkSide