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Para Além de “Quantos Autores Negros?”

Uma análise das barreiras estruturais que separam autores negros das oportunidades

20/11/2021

O despertador marca 8 da manhã, eu desço as escadas de casa e pego um copo de água gelada na cozinha. Subo de novo e tomo meu banho, desço uma segunda vez agora para preparar o café da manhã. Abro o armário da cozinha e o café acabou, não sobrou muita coisa do final do mês, na geladeira também o vazio, acabou o leite, ainda tem uns pães e um ovo. Como um pão seco com um resto de margarina. É primeiro de novembro, estou esperando meus pagamentos caírem. 

De volta ao meu quarto, olho a lista de atividades para o dia de hoje, todas tem um espaço vazio para que eu vá dando check à medida que realizar. Essa lista parece absurda, são 10 itens ou mais. Começo organizando a estante, tem pilhas de livros novos por todo lado do quarto. Tento alcançar a última prateleira, mas ela é alta demais. Grito acordando meu irmão. Ele vem se arrastando, mando trocar de roupa e comer algo, deixei o ovo pra ele. Na volta ele me ajuda. Seguro nas mãos os dois volumes de Casa de Alvenaria e me pergunto quanto da minha jornada como uma pessoa preta tentando viver de escrita seria parecida com a da Maria Carolina de Jesus se ela estivesse lançando esses livros hoje e não em 1961.

Jesus, Carolina Maria de.

Novembro é o mês da Consciência Negra, o que significa que a maioria dos sites e perfis ligados à literatura começaram com a pergunta de praxe: “Quantos autores negros você leu?” Quando não são listas repetitivas com a maioria dos mesmos autores sendo indicados continuamente. Chimamanda Ngozi Adichie, Angie Thomas e Djamila Ribeiro. E não me entenda errado, eu acho que sim é importante que as pessoas sejam questionadas sobre qual é a raça e etnia das suas leituras e eu adoro as três autoras citadas, tenho diversos livros delas na minha estante pessoal.

Porém é preciso um aprofundamento maior nessas questões, são anos perguntando quantos autores pretos você leu e poucas pessoas estão perguntando por que tem sido tão difícil aumentar a quantidade desses autores disponíveis. Sim, existe uma barreira individual  que faz com que leitores leiam poucos autores negros, no entanto também existe uma barreira estrutural dentro do mercado que impede o acesso que histórias criadas por pessoas negras cheguem ao mercado consumidor.

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Podemos pegar como exemplo os dados de 2014 para analisar. Dos livros publicados apenas 2,5% dos autores não eram brancos. Dos personagens retratados nos romances apenas 6,9% eram negros e só 4,5% eram protagonistas. Neste mesmo ano, segundo o IBGE os negros representavam 54% da população brasileira. A maior parte da população brasileira não é representada nas mídias e quando temos personagens negros eles vem carregados de estereótipos e visões racistas, um reflexo direto da ausência de autores e outras pessoas dentro do mercado editorial que sejam negras.

O editor da Malê, Vagner Amaro, em conversa no podcast do PublishNews falou sobre a disparidade racial dentro do mercado editorial. “Se a gente for pensar na quantidade de editores negros atuantes no Brasil, é um número muito reduzido, não chega a 10 editores […] E esses editores que empreenderam as empresas onde trabalham, ou seja, eles não foram absorvidos pelo mercado”. “As pessoas que estão pensando o mercado editorial não são negras”, completou. 

Sento na cadeira diante do computador, são 10 da manhã e finalmente vou começar a jornada de trabalho do dia. Enquanto o arquivo do meu romance abre, olho o aplicativo do banco. Rezando para minhas entidades que o pagamento de um dos meus freelas tenha caído. O saldo marca 57 centavos. Uma pontada de dor de cabeça aparece imediatamente, tento acalmar a ansiedade lembrando que algumas editoras só fazem pagamento dia 5, só vai precisar algumas reorganizações no orçamento. Uma notificação no celular apita, o orçamento da capa para o meu próximo lançamento. Eu vou precisar de pelo menos 3 freelas bons para conseguir arcar com o orçamento total da publicação e nem sei se publicando independente o livro vai se pagar. Respiro fundo, tento sacudir meus questionamentos, neste momento não tenho o privilégio de duvidar de mim. É preciso fazer o que for preciso, por qualquer meio que for necessário.

Quais são as barreiras reais que tem impedido que histórias produzidas e protagonizadas por pessoas negras cheguem às mãos do público consumidor? Sabemos que existe um número crescente de escritores negros publicando suas histórias no mercado independente, mas por que é tão raro observar sua presença nas prateleiras das livrarias, em feiras e prêmios literários?

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Camila Cerdeira

Dayane Borges, escritora e graduanda em Letras Português/Francês pela UNIFESP, tem feito um trabalho incrível em suas redes. Ela tem feito uma análise das editoras mostrando o número e proporção de autores negros dentro de cada grande editora nacional. Também já fez uma análise nas agências literárias e no prêmio Jabuti deste ano. A pesquisa de Dayane parte justamente do questionamento do porquê é tão difícil ter uma estante diversificada. O primeiro pensamento lógico é quantos escritores negros estão nas editoras, mas a pesquisa não fica apenas nisso. Segue uma evolução e surge o questionamento de quantos escritores negros são representados por agências literárias. Essa pergunta é importante por que os agentes literários são as pessoas que podem gerar as pontes ligando autores às grandes editoras permitindo publicação tradicional, e ao perceber que dos 486 escritores agenciados apenas 33 são negros e apenas uma agência, Afeto, foi criada por uma pessoa negra. Isso comprova que existem barreiras que afastam os escritores racializados do mercado editorial, não está faltando talento nos autores negros, mas sim oportunidade.

A carreira como escritor já é uma jornada complicada de se trilhar. Se demanda muito investimento financeiro e dedicação de tempo para escrever, alimentar redes sociais, divulgar além de financiar os próprios livros no início. E mesmo com a publicação independente de ebook se tornando uma opção mais acessível, ela ainda não é uma opção barata e tão pouco tem garantia de retorno. Quando se adiciona a camada racial se torna ainda mais complexo. Óbvio que o mercado está se modificando, temos editoras como a Malê e Escureceu focadas em profissionais negros em todos os processos editorais, não apenas na publicação de autores pretos. Editoras e agências têm consciência de tentar aumentar a presença de escritores não brancos em seus catálogos. No primeiro Prêmio Machado DarkSide, prêmio focado em dar voz a novos nomes da literatura, quadrinhos e outras narrativas, dos 7 premiados 5 eram pessoas negras. Os passos estão sendo dados, eles só precisam de reforço. Precisamos seguir consumindo, refletindo e exigindo mais produção feita por pretos e não brancos como um todo.

Se faz necessário um trabalho em conjunto de conscientização do público consumidor para que se busque mais conteúdo literário produzido por pessoas negras, valorização de produtores de conteúdo como youtubers, bookgrammers e tiktokers negros que promovam um consumo consciente e inserção de profissionais negros em todas as diversas camadas do mercado editorial. Desde estagiários, capistas, tradutores e editores, entre outras funções. Apenas com ações afirmativas poderemos ultrapassar o estágio da pergunta “quantos autores negros você já leu?”.

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Sobre Camila Cerdeira

Avatar photoCamila Cerdeira trabalha com escrita, fotografia e teatro. Fez parte da equipe do NaTV e da Preta, Nerd & Burning Hell. Nerd de criação, negra, não-binário e feminista, mora em Fortaleza, onde também faz parte dos podcasts Orgulho Contra Ataca e Bisão Voador. Camila tem um texto no livro RPG Indagações e assinou com a Se Liga Editorial para publicação de Física do Amor. Espalhada virtualmente, é quase sempre possível encontrá-la discursando sobre questões sociais ou sobre nerdiandade, mas provavelmente sobre ambos ao mesmo tempo.

1 Comentário

  • Edson Santana

    1 de fevereiro de 2022 às 21:41

    A leitura que eu estava precisando fazer!
    Grato

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