Por Sara Stopazzolli
Logo no primeiro episódio de Bom dia, Verônica, a protagonista da série comenta com um colega: “As pessoas ficam julgando, apontando o dedo, mas quase ninguém quer entender o outro lado. Tanta dor um dia cansa”. Verônica, escrivã da delegacia de homicídios, referia-se aos comentários sobre o caso de uma mulher que, depois de ter sido vítima de um abusador, cometera suicídio dentro da delegacia. Era, portanto, uma vítima que chegara ao seu limite, e fora julgada como tantas outras vítimas, como se ser vítima fosse uma escolha. Por que ela permitiu que um cara desse entrasse na vida dela? Por que não caiu fora logo ao primeiro sinal de abuso ou violência? São perguntas que se repetem insistentemente sempre que esse tema é posto à baila, seja na ficção ou na vida real. E responde-las não é tarefa simples.
Durante cerca de quatro anos pesquisei sobre mulheres vítimas de violência doméstica e tudo o que vi e ouvi está relatado no livro Elas em legítima defesa: Elas sobreviveram para contar, da editora DarkSide. Só que ao contrário do que ocorre na delegacia de Verônica, as mulheres do meu livro não se mataram, apesar de também praticarem um ato extremo: mataram seus companheiros para preservar a própria vida. Haviam igualmente chegado a um limite, mas o instinto de sobrevivência (em alguns casos a sobrevivência dos filhos) gritou mais alto; um grito desesperado, como o de um bicho por muito tempo açoitado covardemente, injustamente, que se volta contra seu algoz. E esse “bicho” que reage pode estar dentro de qualquer pessoa, até porque ninguém escolhe o papel de vítima. Ainda assim, a fala de Verônica sobre julgamento social e falta de empatia também caberia perfeitamente no caso dessas mulheres que, mesmo absolvidas pela justiça, continuam sendo julgadas pela sociedade e por elas próprias. Afinal, quando uma mulher nasce inserida numa sociedade que a culpa por tudo e ainda encontra um abusador que reforça esse estigma, fica difícil se ver de fora e ter empatia por si mesma.
Na trama de Bom dia, Verônica há situações de machismo que variam de sutis a escancaradas, além de dois casos de abusadores em série. Um deles mais fatal, um serial killer. Ambos poderiam existir na vida real, mas não são os casos que ocupam grande parte das estatísticas de violência contra a mulher no país. A maioria dos feminicídios brasileiros não são cometidos por homens que dopam mulheres desconhecidas. São cometidos pelos parceiros íntimos, ou ex-parceiros. Por homens que essas mulheres, como ocorre nas histórias do meu livro, acreditavam amar e vice-versa. A maioria dos feminicidas não tem transtorno mental; eles se sentem no direito, autorizados pelo machismo estrutural que subjuga e objetifica as mulheres. E a série tem o mérito de não ignorar essa realidade ao trazer um serial killer, Brandão, que dopa e mata desconhecidas, mas que também é casado com uma mulher, Janete, por quem ele ora demonstra algum afeto, ora pratica violência psicológica, patrimonial e física. A trama ilustra bem o ciclo da violência doméstica (que deveria ser estudado nas escolas!): a lua de mel, as tensões, a violência, o perdão, a nova lua de mel, a tensão, a violência… numa espiral que vai se estreitando até chegar a um possível feminicídio.
Segundo pesquisa do Ministério Público de São Paulo, a grande maioria das mulheres vítimas de violência letal por razões de gênero não chegou sequer a acessar os órgãos de segurança pública. Ou seja, não é a justiça que não está concedendo medida protetiva ou punindo os agressores, há uma barreira anterior a isso: o silêncio das vítimas. E as razões para esse silenciamento, segundo o que pude observar, passam pela opressão, medo, culpa, baixa autoestima, dependência afetiva e romantização da família tradicional.
É justo julgá-las?
No lugar do julgamento, recomendo a empatia. Para isso, é preciso falar sobre violência contra a mulher, é preciso que histórias com essa temática sejam contadas humanamente, apresentando mulheres como sujeitos complexos, com subjetividades, sonhos, desejos. Ficções e não-ficções que abordem esse tema são bem vindas em um país que há muito tempo manteve o silêncio, ou optou por focar nas estatísticas e no punitivismo, deixando de lado o debate, a compreensão, a educação e a empatia. E o silêncio é cúmplice da naturalização da violência. O silêncio é cúmplice do agressor.
Que venham mais e mais obras para recuperar a voz das mulheres depois de tantas décadas de silenciamento. E que essas narrativas sejam sensíveis ao ponto de propor uma reflexão sobre o tema sem reforçar e espetacularizar a violência, os estereótipos em relação à gênero, às vítimas e até aos próprios agressores. Só assim a arte pode promover, de fato, um verdadeiro impacto social.
Espero que no futuro essas obras de agora fiquem datadas, e que as próximas gerações, num misto de choque e satisfação, percebam o quanto evoluímos em relação à equidade de gênero.
Sara Stopazzolli é jornalista, pesquisadora e roteirista. Trabalhou por mais de dez anos como repórter, colaborando com inúmeras publicações (Trip, tpm, piauí, Serafina, Revista do Globo) com foco em perfis e reportagens de comportamento. Criou a produtora Mera Semelhança em 2013, onde tem desenvolvido projetos audiovisuais. O documentário Legítima Defesa é o primeiro filme em que assina a pesquisa e o roteiro. Dirigiu e roteirizou o documentário em curta-metragem Escola de Homens, lançado pela mov.uol, que explora o ponto de vista de homens que frequentam um grupo reflexivo para supostos autores de violência doméstica. Recentemente, lançou o canal de podcast Luneta do Crime, onde conta histórias desconhecidas de crimes reais cometidos contra mulheres no Brasil.
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