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Machado de Assis: Muito além do Realismo

Autor elaborava personagens verdadeiros, com vícios e virtudes

01/05/2022

O que torna um personagem bom? Possuir bons valores morais, ser o mocinho e ser absolutamente virtuoso do início ao fim? Certamente não. Os personagens mais admirados de todos os tempos não são puramente bons ou maus. Eles possuem nuances com qualidades, teimosias, traumas e sua boa dose de irracionalidade.

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Machado de Assis sabia muito bem disso, e utilizou essa visão mais profunda da psique humana para elaborar personagens inesquecíveis, pecadores, com virtudes e vícios mundanos. Um recorte de sua obra pode ser encontrado em Machado, a Cidade e seus Pecados, que reúne contos, novelas e fragmentos de romances de um dos autores brasileiros mais influentes de todos os tempos.

Embora frequentemente associado ao Realismo, Machado de Assis ia além, muitas vezes servindo justamente como um contraponto ao movimento. “A realidade é boa, o Realismo é que não presta para nada”, afirmou o próprio autor no seu ensaio “A Nova Geração”.

A Relação de Machado de Assis com o Realismo

A história do Realismo no Brasil começa justamente com uma obra machadiana: Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881. O movimento literário ocorreu paralelamente a muitas mudanças econômicas, políticas e sociais do Brasil, como a queda da escravidão e do Império e o fortalecimento da agricultura.

Essas mudanças significativas abriram o país para a influência de ideais europeus da época, como liberalismo, socialismo, positivismo e cientificismo, por exemplo. Foi em meio a esse contexto que Machado de Assis evoluiu com sua escrita.  

Antes da década de 1880, a obra do autor era principalmente influenciada pelo Romantismo. Os trabalhos deste período abrangem títulos como Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena, Iaiá Garcia, entre outros. Mesmo consideradas obras românticas, a narrativa machadiana já dava as caras com tímidas análises do interior de seus personagens.

Créditos: Marc Ferrez

Foi a partir de 1881 que ele passou a apresentar certa maturidade em sua escrita, justamente a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas, um marco não apenas na sua bibliografia, mas para o próprio Realismo brasileiro.

Não coincidentemente, foi em 1881 que Machado foi acometido pela epilepsia. A saúde debilitada e os fortes remédios que ele precisava tomar o conduziram a um período mais pessimista, que abriu caminhos para o Realismo. Nessa fase, sua obra é marcada pela forte ironia e um humor carregado de amargor, mesmo em relação às histórias que conta. Seus principais trabalhos a partir de então foram Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires

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Por que Machado de Assis não é apenas Realismo

Uma das características de autores realistas que seguiam Gustave Flaubert esqueciam do narrador, mantendo-se objetivos. Já os naturalistas, como Émile Zola, preferiam narrar todos os detalhes do enredo. Machado não seguiu nenhuma das correntes, interferindo na narrativa e dialogando com o leitor, enriquecendo suas histórias com metalinguagem, intertextualidade e seu característico humor ácido e reflexivo.

Outro distanciamento do autor da proposta realista é a não compactuação com a ideia de que tudo no comportamento humano é determinado por causas precisas. Em suas histórias, Machado muitas vezes deixa o leitor sem uma justificativa racional para os atos de seus personagens, o que é absolutamente normal no mundo real. Por mais racionais que o ser humano se considere, ainda está na sua natureza fazer coisas que não possuem explicação.

Diferentemente do Realismo, Machado de Assis não costumava seguir uma narrativa linear, aproximando-se do impressionismo associativo. Os eventos são relatados conforme surgem na memória do narrador ou de seus personagens, sem o apego a uma ordem cronológica ou à noção de causa e consequência. Tais interrupções, muitas vezes preenchidas com uma digressão, permitem um diálogo ou uma avaliação do leitor sobre o caráter de determinado personagem.

A fantasia e o terror machadianos

E embora os livros mais conhecidos do autor estejam mais próximos do Realismo do que de qualquer outra corrente literária, Machado também lidou com a fantasia, o sobrenatural e até mesmo com ficção científica em seus contos e romances.

O elemento sobrenatural era empregado pelo escritor não para causar sustos gratuitos em seus leitores, mas para criar um clima enervante e perturbador para seus personagens. Ele conferia um tom visceral em algumas passagens, causando desconforto e certo pavor naqueles que mergulham na história.

Seus contos de fantasia sombria envolvem títulos como “O País das Quimeras”, “O Imortal”, “A Vida Eterna”, “A Chinela Turca”, “Um Esqueleto”, “A Mulher Pálida”, “A Segunda Vida”, entre outros. No terror psicológico, “O Segredo de Bonzo” mergulha no elemento fantasioso sem perder de vista a crítica social tão característica do autor, abordando principalmente a manipulação das massas.

Até mesmo nas suas obras consideradas plenamente realistas é possível observar essa tendência de Machado pelo insólito. O próprio Memórias Póstumas de Brás Cubas possui um tom sombrio logo em sua abertura, quando o narrador dedica seus escritos aos vermes e, claro, ao fato de a história ser contada por um morto.

Principais características da narrativa machadiana

Mesmo sem seguir uma corrente literária à risca, escrevendo sobre o real e o sobrenatural, Machado deixou obras com características em comum, imprimindo uma assinatura particular facilmente identificável pelos leitores, podendo ser observada em trabalhos de outros escritores influenciados por ele.

Algumas dessas características são:

Contradição: o mundo é retratado pelo autor com todas as suas contradições. Ele constrói dilemas em cima de fatos com versões antagônicas, dando uma visão mais profunda e complexa de enxergar os eventos. 

Ironia: às vezes chegando ao humor e às vezes sendo absolutamente discreta, a ironia é empregada por Machado como uma crítica aos comportamentos, costumes e estruturas sociais. 

Pessimismo: os trabalhos de ficção do autor costumam ser carregados de uma visão desencantada com a vida, a sociedade e o ser humano. Machado não compartilhava dos valores de sua época — nem sequer acreditava neles. Sua missão era a de desmascarar o cinismo e a hipocrisia política e social da época.

Psicologismo: a narrativa de Machado de Assis é caracterizada por um texto enxuto, com uma verdadeira economia de palavras. Ele fazia isso para poder se concentrar no psicologismo de seus personagens, sem se arrastar em descrições, focando no quadro psicológico de sua trama. O próprio vocabulário do autor não é complicado, embora possa causar alguma estranheza hoje por causa dos termos que caíram em desuso.

Machado de Assis é um escritor que não pode ser colocado em uma caixa, amarrado a um estilo literário. Ele é um bruxo não apenas das palavras, mas da própria alma humana, compreendendo-a onde não há o que compreender e trazendo mistérios insolucionáveis, até mesmo para o autor.

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Sobre DarkSide

Avatar photoEles bem que tentaram nos vender um mundo perfeito. Não é nossa culpa se enxergamos as marcas de sangue embaixo do tapete. Na verdade, essa é a nossa maldição. Somos íntimos das sombras. Sentimos o frio que habita os corações humanos. Conhecemos o medo de perto, por vezes, até rimos dele. Dentro de nós, é sempre meia-noite. É inútil resistir. Faça um pacto com quem reconhece a beleza d’ O terror. O terror. Você é um dos nossos.

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5 Comentários

  • Milene

    5 de maio de 2022 às 10:08

    Muito bom. Parabéns. Machado como devia ter sido entendido, sempre.

  • Silvana jorge

    12 de maio de 2022 às 11:08

    Maravilhoso Machado. Realmente um gênio……..

  • Aralvus Corvínio

    8 de outubro de 2023 às 12:55

    onde entra parte que ele “lidou com a ficção científica”? teve algum conto ou romance dele com parte na sci-fi ou um tiquinho só?

    • Avatar photo

      DarkSide

      10 de outubro de 2023 às 13:38

      Olá. Ainda que de maneira sutil, podemos dizer que Machado de Assis escreveu dois contos que podem ser considerados como ficção científica, pois tratam do tema da imortalidade através de um elixir misterioso. Os contos são “Rui de Leão” e “O Imortal”, que contam duas versões da história de Rui de Leão, um fidalgo português que viveu entre os indígenas tamoios e recebeu de um pajé uma poção que o tornou imortal. As histórias mostram as aventuras e os dilemas de Rui ao longo dos séculos, em diferentes lugares e épocas.

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