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O UNIVERSO DARK DE FÃ PARA FÃ


ArtigoCrime Scene FictionSéries

O Tony Soprano que vive em cada um de nós

Quando o ridículo é parceiro constante da violência e nossos maiores medos são escancarados

18/11/2024

ATENÇÃO: O POST CONTÉM SPOILERS DE FAMÍLIA SOPRANO

Família Soprano não é uma série sobre máfia. Quer dizer, claro, há pistolas, jogatinas e cadáveres de sobra, mas reduzir essa obra a “uma série de mafiosos” seria como dizer que Moby Dick é só um livro sobre baleias. Desde o primeiro episódio, o que realmente se destaca é o descompasso inquietante entre a força externa e o colapso interno de Tony Soprano — um homem com poder para esmagar seus inimigos, mas que mal consegue sobreviver ao jantar de domingo.

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A genialidade da série está no desconforto, no desarranjo constante entre as expectativas e a realidade. Se você esperava glamour criminoso, Família Soprano te oferece uma profunda dissecação psicológica sobre culpa, medo e autopreservação. E a arma mais letal de todas? A banalidade de tudo isso.

E, falando em desconforto, o humor aqui é uma faca de dois gumes, corta tanto o espectador quanto os personagens. Os momentos cômicos não são um alívio, mas uma forma de amplificar a tragédia. O que poderia ser mais sombrio do que duas figuras da máfia, Paulie e Christopher, perdidos numa floresta, implorando por um manual de sobrevivência enquanto congelam? Esse é o ponto: em Família Soprano, o ridículo é o parceiro constante da violência. Eles podem ser assassinos, mas são, antes de tudo, ridículos. Há uma ironia fria aqui — a grande vida dos mafiosos? Reduzida a migalhas, brigas infantis e fracassos patéticos. E o mais assustador é que rimos disso, porque também nos vemos ali, tropeçando nas pequenas misérias do cotidiano.

tony soprano

A grande sacada de David Chase não é contar uma história sobre gângsteres, mas mostrar como todos nós, em maior ou menor escala, somos prisioneiros de nossos impulsos e ilusões de controle. Tony Soprano é apenas o avatar perfeito disso. Ele é um bruto, um assassino — mas também um filho ressentido, um marido desesperado e, mais do que tudo, um homem apavorado com sua irrelevância existencial. As sessões de terapia com a Dra. Melfi são quase cômicas nesse sentido: ele entra no consultório esperando uma cura mágica para seus problemas, mas sai com mais questões do que respostas. Cada diálogo revela menos sobre soluções e mais sobre como Tony está preso em um ciclo sem saída, sufocado pelos fantasmas de sua infância e pelos espectros do poder que tanto almeja, mas nunca pode realmente segurar.

E é nesse emaranhado de crises que a série brilha nos episódios finais. Tony Soprano não é apenas um homem em declínio; ele é uma caricatura ambulante da queda inevitável que todos tememos, mas fingimos ignorar. No final, Família Soprano não te dá o destino trágico que Hollywood tanto ama. Não há aquele “bang” conclusivo que encerra tudo de forma limpa. Não. O corte para o preto, aquele instante infame e enervante de “Made in America”, é uma obra-prima porque entrega o controle para nós, os espectadores. Ficamos paralisados, tal como Tony, esperando pelo tiro que talvez nunca chegue. E se há algo mais genuinamente brutal do que ver uma bala entrar no crânio de Tony, é ser deixado no vácuo, imaginando quando o nosso próprio momento chegará. É um golpe genial, cruel, e absurdamente honesto.

Claro, Tony discutiu isso antes. Morrer provavelmente nem dói, você sequer escuta o disparo, disse Bobby uma vez. E a série nos presenteia com esse destino invisível: a ausência de fim. Chase não precisa mostrar a morte de Tony; o que ele nos dá é algo muito mais perturbador — a certeza de que, seja naquele momento ou depois, ele está condenado. As escolhas violentas, as traições, os negócios sujos — tudo culmina naquela cena final, em que o vazio e o ordinário se encontram em uma lanchonete qualquer. O silêncio do final é o som da inevitabilidade.

família soprano

E o mais cruel disso tudo? Tony nunca muda. Ele começa a série sufocado por ataques de pânico, lutando com a família e se debatendo com crises existenciais — e termina da mesma forma. Sua tragédia não está em um fim dramático, mas em sua estagnação. Por mais que ele tente manipular o mundo ao seu redor, tudo escapa entre seus dedos. É um ciclo eterno de poder ilusório. A morte de Christopher, o último respiro de Bobby — tudo isso só reforça o que Tony sempre soube, mas nunca quis encarar: o controle é uma piada cósmica, e o universo, com seu senso de humor doentio, sempre cobra o preço.

Momentos devastadores como a ordem para matar Adriana em “Long Term Parking” ou o asfixiamento de Christopher em “Kennedy and Heidi” são emblemáticos da essência da série: Tony, apesar de todo seu charme, é um homem destruído por dentro, preso numa espiral de decisões cada vez mais insustentáveis. Cada assassinato, cada perda ao seu redor, são passos em direção ao inevitável — a morte que ele teme, mas que já está incrustada em cada escolha sua.

Família Soprano é brilhante porque nunca perde de vista a humanidade dos personagens. Mesmo em seus momentos mais brutais, há uma tristeza silenciosa permeando tudo. O relacionamento de Tony com Carmela, a evolução desastrada de AJ e Meadow, e as infindáveis batalhas psicológicas com sua mãe, Livia, fazem da série não apenas uma saga criminosa, mas uma crônica sombria e muitas vezes cômica sobre o que significa ser parte de uma família disfuncional.

família soprano

No final das contas, Família Soprano não se trata de crime ou punição. Trata-se da incapacidade de escapar — do passado, dos laços de sangue, da própria natureza. Tony não é apenas um mafioso. Ele é a representação de todos nós, aprisionados por nossas decisões, vivendo o que parece ser um ciclo infinito. E Chase, com uma sagacidade cruel, nos lembra que a vida é assim: um banquete sem fim, onde sempre esperamos pela próxima crise, pela próxima traição, pelo próximo tiro que, sem dúvida, virá — mesmo que nunca o escutemos.

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Sobre Mateus Campos

mateus camposMateus Campos é jornalista e pesquisador. Já assinou reportagens e artigos de opinião em veículos como O Globo, UOL, Billboard e The Intercept Brasil, além de ter colaborado em publicações da Academia Brasileira de Letras e da Festa Literária Internacional de Paraty. Mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio.

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