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O Perrengue de Cada Dia

Por trás da tradução de O Mal Nosso de Cada Dia (Donald Ray Pollock)

15/07/2021

Em fevereiro de 2017, como muitos, deixei o interior da Bahia e fui para São Paulo em busca de trabalho. Como poucos, buscava trabalhar com livros.

Para poder me dar ao luxo de escolher meu próximo emprego, passei o ano anterior juntando dinheiro para aguentar alguns meses tranquilos na cidade da garoa. Em sua maior parte, eram os lucros resultantes de um investimento certeiro numa plantação de cebolas na região de Irecê – a plantação, por sua vez, tinha sido financiada com a grana de um edital para a escrita de um livro de contos fantásticos passados na Bahia, até hoje inédito.

Cheguei em São Paulo sem conhecer nada ou ninguém, com vinte livros na capanga, um mestrado em tradução, e uma meia dúzia de artigos, contos e ensaios publicados por aí. Não previa que amargaria sete meses de desemprego numa cidade capaz de lhe oferecer qualquer coisa a qualquer hora – desde que você tenha dinheiro. Enquanto varava os dias da cidade entregando currículos pessoalmente e as noites entregando currículos virtualmente, aproveitei a liberdade do desemprego para desfrutar da famosa vida cultural paulistana, que lhe oferece por um preço baixo muita coisa que você desejar – desde que você tenha tempo.

Desbravei bibliotecas públicas e cinemas retrôs; assisti a peças de teatro insuportáveis e a orquestras sublimes; frequentei cursos baratinhos de escrita, edição, tradução, roteiro e quadrinhos. Em setembro, com minhas reservas perto do fim, quando dividia meus planos entre me integrar à Cracolândia ou voltar para o sertão com o rabo entre as pernas, recebi da editora a confirmação de que traduziria The Devil All the Time, de Donald Ray Pollock.

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Alguns meses antes, logo que vislumbrei a oportunidade de traduzir o romance, apreciei a prosa exuberante e incisiva do autor, de maneira que, mesmo sem a confirmação, encomendei um exemplar físico do livro. Com a confirmação, vasculhei as bibliotecas da cidade em busca de atmosfera. Gosto de me rodear com obras relacionadas ao tema quando estou na iminência de produzir algo. Além de filmes, entre o primeiro contato e o dia em que entreguei a tradução, li Onde os Velhos Não Têm Vez, de Cormac McCarthy, alguns contos de Flannery O’Connor, Winesburg, Ohio, de Sherwood Anderson (também passado em Ohio, também protagonizado por um Willard) e listei mais um monte de obras que só leria depois.

Como não tinha mesa em casa, comecei a tradução na praça de alimentação de um shopping. Mal traduzira um punhado de capítulos – lembre-se, após longos meses de desemprego – e o computador travou exatamente enquanto eu digitava. Por sorte (minha e de muita gente), sou um mero operário das letras, e não um cozinheiro (poderia ser vazamento de gás), um pedreiro (escada mal parafusada), ou um piloto de avião (falha na turbina).

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O computador não ligou mais, e um simples diagnóstico do problema demoraria um quarto do prazo do livro. Nos cursos de edição eu já havia aprendido como o descumprimento dos prazos podia desandar uma parceria, ainda mais uma recente. Eu que não furaria o prazo logo na primeira tradução. A solução foi começar a traduzir o livro à mão, em folhas de ofício, e depois digitar tudo numa lan house, aproveitando para revisar nesse mesmo momento – um processo prolongado, que em meu sertão denominamos “trabalho de corno”, mas nada comparado aos problemas reais dos personagens do romance.

Compadecida, minha amiga Júlia, que eu conhecera em um daqueles cursos, salvou a minha vida ao me emprestar um netbook chileno pouco menor que a edição de O Mal Nosso de Cada Dia da DarkSide®. Durante todo o processo, não aprendi a colocar o acento agudo nele, e tive que copiar e colar um a um, os que não foram inseridos pelo corretor automático. Ao contrário do que muitos podem pensar, até isso foi feito com animação. Confesso que, quando finalmente recebi meu exemplar do livro, quase três anos depois, no meio da pandemia, senti saudades desse processo tortuoso; e dos caminhos que precisei encontrar para consertar tanto perrengue.

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Sobre Paulo Raviere

Avatar photoPaulo Raviere nasceu em Irecê-BA, em 1986. Colaborou com o Blog do IMS e as revistas Pesquisa FAPESP, Barril, Serrote e Piauí. É editor da DarkSide®️ Books, pela qual também publicou traduções de obras de Robert Louis Stevenson, Bret Easton Ellis, Donald Ray Pollock, Clive Barker, Joseph Conrad, David L. Carlson e Landis Blair, entre outros. Tem mestrado em tradução pela UFBA e atualmente pesquisa e traduz a obra de Charles Lamb em doutorado na FFLCH-USP. Todos se Lavam no Sangue do Sol é seu primeiro romance publicado pela DarkSide®️ Books. Saiba mais em raviere.wordpress.com.

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3 Comentários

  • Wilma Suely Ribeiro Reque

    19 de julho de 2021 às 18:14

    Linda apresentação!
    Se eu não tivesse já o livro, compraria imediatamente!!
    Que tenha muito sucesso em centenas de livros!

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